É curioso perceber a constante espanhola em citar os acontecimentos em torno da sua Ditadura Franquista. Pelo menos quando comparamos com a produção portuguesa que quase sempre foge do tema. É como se nos esforçássemos para esquecer o passado. Já na vizinha Espanha, a referência, directa ou indirecta, é constante, e serve como pano de fundo a qualquer história, quando não é o seu tema principal.

Em Soldados de Salamina a abordagem é algo diferente do usual pano de fundo, não se centrando na vivência de guerra ou na migração, nem sequer nas consequências para as vidas dos civis. O pretexto é a sobrevivência de um falangista face a um batalhão de fuzilamento, mas através dele se explicam algumas questões políticas que desconhecia. A história consegue proporcionar, simultaneamente, uma abordagem íntima do carácter humano, e uma perspectiva histórica interessante.

Mas afinal, o que é um falangista? De uma forma muito simplificada, a Falange Espanhola foi um partido político fundado em 1933 com ideologia fascistas. Pretendia-se com ideias próximas às do fascismo italiano, constituindo uma reacção às ideias de esquerda. Este movimento foi apoiado pelos sectores financeiros e empresariais. Fundando-se com outras frentes e partidos, acabou por defender uma ideologia com algumas divergências em relação à Italiana por apresentar um foco na tradição e no catolicismo, ao invés de um Homem Novo.

Um dos fundadores deste movimento, Rafael Sáncez Mazas, sobrevive a um fuzilamento em massa de prisioneiros. Este episódio e a pesquisa dos seus detalhes constituem o ponto de partida para o romance que aqui se apresenta, ainda que a história tenha vários níveis narrativos. Numa primeira dimensão, encontramos a perspectiva do próprio autor enquanto jornalista que pesquisa informação sobre um episódio em concreto. Num segundo nível, encontramos a história de Mazas, mas num terceiro a história de um soldado republicano que prestou serviço na mesma altura do dito fuzilamento em massa.

Javier Cercas parece ter abandonado a vertente de escritor. Os seus primeiros livros não terão tido o sucesso a que almejava. Neste projecto, justifica-se, referindo que pretende escrever enquanto jornalista e investigador e não como romancista. Nesta dimensão, o autor apresenta-se como personagem, referindo-se aos principais episódios que direccionaram a investigação – como uma entrevista a Roberto Bolaño que o levaram por caminhos imprevistos.

Entre diários, entrevistas e jornais amarelos, Javier Cercas reconstrói o episódio e dá corpo às personagens. Não são meras referências históricas, mas sim elementos caracterizados o suficiente para se acompanhar a narrativa. Assim Javier Cercas dá uma dimensão mais envolvente à história. Ainda que centre a história num fascista, não há lugar a demonização ou justificação, apenas contextualização.

A cereja no topo do bolo (ou aquilo que confere uma maior dimensão humana) é o cruzamento da história com a perspectiva de um homem que esteve, enquanto soldado republicano, presente no fuzilamento em massa. O que é, afinal um herói? Esta questão surge em conversa com Bolaño, mas será, também, aquilo que direcciona esta última dimensão de Soldados de Salamina.

Mas qual o papel narrativo destas três dimensões? Ao nos apresentar a sua perspectiva pessoal, o autor consegue introduzir elementos levemente cómicos que servem para aliviar o tema e conduzir-nos por entre uma investigação que, de outra forma, poderia ser maçadora. Cada descoberta é, desta forma, intercalada com momentos mais relaxados que servem, também, para criar empatia com o leitor.

O segundo nível é a justificação para o livro. Mazas continua a ser uma incógnita, um homem reservado. Associado ao movimento fascista, vê os seus ideais transformados em algo diferente, e acaba por se afastar. O confronto com a sua mortalidade mudou-o de alguma forma, mas nem ele o refere como. No terceiro nível voltamos a ser confrontados com uma perspectiva mais pessoal e empática, que, não só interliga emocionalmente às restantes, como confere à história uma maior dimensão.

Em termos visuais, não é extraordinário. O desenho é bom, oscilando entre o detalhe e o foco na expressões, e respondendo à narrativa. Em cores, apresenta-se como vários outros livros de autores espanhóis, em páginas de uma ou duas cores, que oscilam entre o castanho e o cinzento azulado. São raras outras combinações.

Já em termos narrativos, é excelente. É uma leitura que consegue informar sem despejar informação. Acima de tudo, conta uma história com raízes reais, mas transforma-a para a tornar empática e envolvente. Soldados de Salamina foi publicado pela Porto Editora em capa dura, destacando-se o acabamento de alto relevo na capa.