
Em Embalando a minha Biblioteca, de Alberto Manguel, contactamos com a ligação de um leitor ao seu conjunto de livros – ligação que também eu tenho com a minha biblioteca em crescimento. Deambular por uma biblioteca alheia é curioso – encontram-se livros em comum e desperta-se o interesse em novos livros. Mas deambular pela nossa própria biblioteca desperta memórias e emoções, sejam positivas ou negativas. É o mesmo que encontrar velhos amigos e recordar episódios. Neste caso que não se passaram directamente connosco, mas que recordamos como se fossem nossos.
Pois bem, no seguimento de embalar, sem esperanças, a sua biblioteca, Alberto Manguel recebeu um convite para, em Lisboa, a refazer, num novo edifício. Não seria, claro, uma biblioteca só para Manguel, mas uma biblioteca associada ao cargo de Director de um novo instituto, o Centro de Estudos da História da Literatura. E é neste seguimento que Manguel explica a sua mudança para Lisboa, conjuntamente com a sua biblioteca.
Após esta introdução, o autor passa à História da Leitura propriamente dita, sendo que, não se resume à apresentação de factos – nada de surpreendentemente para quem já conhece o estilo de Manguel. Temos portanto curiosidades e episódios pessoais, algumas memórias, intercalados com elementos interessantes para perceber que o Ler é tão diferente quantas as diferenças culturais, quer ao longo de diferentes países, quer ao longo de diferentes civilizações.
Em A Última Página, o primeiro capítulo do livro, o autor fala do acto de Ler e do refúgio mental que lhe está associado, principalmente, desde que as pessoas se habituaram a ler para si próprias. Se, antigamente, o ler era público, um acto em voz alta que não permitia privacidade, com o ler para si próprio, este cenário muda-se (este acto de ler silenciosamente é, também, falado no capítulo Os Leitores Silenciosos). Consequentemente, o ler passa a ser uma actividade encarada por perigosa por Estados Totalitários ou Ditaduras (trecho abaixo) e alguns livros são proibidos (tema explorado, também, em capítulo próprio, Leituras Proibidas):
O receio comum do que um leitor possa fazer entre as páginas de um livro é como o perene medo que os homens têm do que as mulheres podem fazer nos lugares secretos dos seus corpos, e do que conseguiriam as bruxas e os alquimistas na escuridão, atrás das suas portas fechadas. (..)
Os regimes populares exigem que nos esqueçamos e, consequentemente, tratam os livros como luxos supérfluos; os regimes totalitários exigem que não pensemos e, consequentemente, banem, ameaçam e censuram; tanto uns como outros, de maneira geral, exigem que nos tornemos estúpidos, encorajam o consumo de lixo. Nestas circunstâncias, os leitores não podem senão ser subversivos.
Esta ideia do leitor como estando à parte da sociedade e de ser temido, volta a ser explorada mais no final do livro, no capítulo O Louco dos Livros. O leitor enquanto pessoa que dispensa parte da socialização para se fechar nos livros, que é visto como tentando ser superior aos restantes, que procura outras conversas e outras ideias e que, por isso, acaba desprezado e ridicularizado pelos restantes. O símbolo do leitor? Os óculos, que denotam um afastamento do mundo material, um ar de intelectual que é acolhido com resistência pelos restantes:
A maioria dos leitores, hoje como ontem, já passou pela humilhação de ouvir que a sua ocupação é censurável. Lembro-me de se rirem de mim, num intervalo durante o sexto ou sétimo ano, por ficar na sala a ler, e de a experiência acabar comigo deitado de barriga para baixo, os meus óculos atirados para um canto, o meu livro para outro. (…) A minha avó, vendo-me a ler aos domingos à tarde, suspirava: «sempre a sonhar acordado», porque a minha inactividade lhe parecia uma perda de tempo e um pecado contra a alegria de viver. Preguiçoso, frágil, pretensioso, pedante, elitista (…)
Manguel não deambula apenas no acto de ler. Em Ler Sombras em Aprender a ler, segundo capítulo, fala do processo mental da leitura e das várias abordagens, pegando, até, no exemplo de alguns homens que, de cérebro lesado, perdem a capacidade de ler palavras inventadas. Uma componente interessante para quem se apercebe que, nalgumas escolas, o aprender a ler, nem sempre começa com juntar letras, mas a decorar palavras e a desconstruir as mesmas.
Mas o processo de ler nem sempre se baseia apenas em palavras e pegando neste princípio, Manguel explora as imagens que foram sendo feitas para serem interpretadas, como forma de passar uma mensagem para os que não sabiam escrever e assim, quebras estas barreiras. Por outro lado, ouvir ler também é uma parte interessante da experiência de leitura e o autor apresenta essa vertenta, falando de pessoas que lêem, de casa em casa, dramatizando a leitura e levando as histórias a pessoas que não possuem a capacidade de as ler por si próprias. Ultrapassando esta necessidade, o autor fala, também, da experiência, distinta, de ouvir ler, colocando o ouvinte como receptor das palavras de outrém.
A forma como lemos e memorizamos volta a ser tema no capítulo O Livro da Memória em que o autor fala de escrever nos livros enquanto lê, ou das memórias que agora guarda em meios mais digitais, os computadores, criando-lhes espaço neste mundo da leitura e demonstrando que computadores e livros não têm de ser opostos.
Aliás, é impossível falar da experiência de leitura sem falar em formatos, e Manguel dedica a este tema um capítulo inteiro, destacando papiros e pergaminhos, diferenciando a leitura em rolo e em unidades de papel, demonstrando como a experiência de escrita e de leitura é influenciada pelo formato. Mais tarde, noutro capítulo, há-de ainda falar da impressão que disponibilizou novas cópias para novos leitores e, até, ainda noutro capítulo, do processo de tradução e da transformação do texto.
Como outros livros de Alberto Manguel, Uma História da Leitura denota uma imensa paixão pelos livros e pela Leitura, utilizando exemplo ficcionais e reais para explorar cada uma das vertentes do acto de Ler. A edição encontra-se ilustrada, mostrando-se pinturas da Idade Média em que se retratam leitores ou várias das formas como as palavras ou sons podem ser representados.
É um livro apropriado para qualquer leitor aficcionado que só peca por dois detalhes da edição portuguesa: a capa em cartão claro vai ser difícil de manter em bom estado, sendo que a respectiva lombada fica totalmente marcada após uma única leitura cuidada. Tirando estes dois detalhes, é um livro fascinante!