Peter Pan é a mais recente série publicada pela Asa em parceria com o jornal Público. Não é a primeira vez que esta série é lançada em Portugal, mas alguns dos volumes encontram-se indisponíveis pelo que é uma oportunidade para aqueles que, como eu, não tiveram possibilidade de a adquirir na primeira edição. Trata-se de uma reintreptação da história de Peter Pan – uma versão de realidade mais dura do que a versão popularizada pela Disney, e, até agora, uma cativante leitura.

A história

A série começa por nos apresentar uma criança chamada Peter numa Londres sombria, decadente e, até, asquerosa. Esta rapaz distingue-se dos outros meninos de rua por ter mãe, usando-a para descrever a um grupo de órfãos como é ter alguém de quem recebe carinho e atenção. No entanto, ultrapassando esta visão idílica de uma figura feminina, a vida de Peter não é muito diferente dos restantes. A mãe é uma mulher bêbada que se preocupa mais com a próxima bebida do que com o rapaz, não hesitando enviá-lo para adquirir bebida, sem dinheiro.

É depois de um episódio destes que expulsa o rapaz de casa, deixando-o ao relento. E é nessa noite que Peter encontra uma pequena fada que o ensinará a voar, e o levará para a Terra do Nunca, onde conhece piratas e irá viver grandes aventuras.

A origem

A personagem Peter Pan surgiu numa história de J. M. Barrie, The Little White Bird (1902). Mais tarde, as passagens referentes à personagem foram extraídas e republicadas num único volume em 1906. Após esta publicação, o autor voltou à personagem e estendeu as histórias num novo volume, Peter and Wendy, em 1911. Esta rapaz, que nunca cresceria teria aprendido a voar com as fadas e poderá ter sido baseado no irmão do autor que morreu ainda jovem.

A narrativa

A visão de Loisel não é romantizada. A cidade que rodeia Peter é habitada por adultos degradados e degradantes, que não hesitam em usar as crianças em seu próprio benefício. Este retrato da infância, onde as crianças são vistas como adultos pequenos e tratadas como tal, recorda (como diz a sinopse) o ambiente londrino de Dickens. Mas não por ser uma atmosfera romântica – antes um local de sobrepopulação, de pobreza financeira e de valores morais. Para além do ambiente, a própria visão dos mais jovens é semelhante – também Peter é uma criança que, apesar de traquina, se mantém inocente e de bom coração, apesar de tudo o que o rodeia.

A história é contada na perspectiva de Peter, envolvendo o leitor nos traumas vividos pela personagem. Esta forma de apresentar a história leva-nos a sentir a brutalidade dos episódios que se sucedem, ao contactar com vários adultos decadentes e viciados. É este jovem rapaz que ainda anseia pelos carinhos de uma mãe idílica, carinhosa e paciente, e que não se toma pelos desejos da adolescência que se aproxima, mesmo quando estimulado por prostituas desenvergonhadas. O rapaz recusa-se a crescer e é neste estado de inocência que se mantém com a passagem do Terra do Nunca. Peter é aventureiro e imaginativo, nega a seriedade dos adultos, bem como as mudanças que correspondem à adolescência.

Se, no primeiro volume, que decorre na cidade, o ambiente é soturno e repulsivo, na Terra do Nunca, sentimos um aligeirar da tensão. Peter é confrontado com episódios de perigo, mas tratam-se de grandes aventuras que libertam o rapaz dos problemas mundanos. Existirá, também, um momento de auto exploração que o levam a enfrentar os traumas, como um processo de cura que o fará crescer de uma forma heróica, sem deixar a inocência que o caracteriza.

Esta versão da história, mais adulta (pelo confronto com elementos mais traumáticos e, até, eróticos) trabalha sobre vários traumas infantis, mostrando uma sociedade onde as crianças não são protegidas, mas sim exploradas e abusadas em vários sentidos. Face a estes traumas, algumas crianças refugiam-se nas suas próprias mentes, rejeitando tudo aquilo a que associam à origem dos traumas – a idade adulta. Este fenómeno psicológico serve, aqui de base para a criação da Terra do Nunca, onde Peter tem então a possibilidade de se manter jovem e viver aventuras num ambiente onde não faltam fadas, piratas ou índios.

O desenho

O visual de Peter Pan corresponde ao de um francobelga, mas afasta-se das perspectivas estáticas que encontramos nalgumas obras. As personagens apresentam expressões faciais mais carregadas, uma caricatura ligeira que se torna bem sucedida a transmitir sentimentos. Neste primeiro volume as expressões são quase todas de infelicidade, tristeza e dor, mostrando-nos a realidade de Peter numa cidade escura, fria e suja.

Já no segundo volume, que decorre na Terra do Nunca, o ambiente acompanha a narrativa, mostrando-se mais leve e colorido. Os cenários oscilam entre a praia onde se encontra o barco pirata e os campos verdes da ilha, onde Peter irá ter grandes aventuras. Apesar dos piratas e dos perigos, parte da tensão desvanece-se e tal nota-se na postura e nas expressões de Peter.

Conclusão

Esta versão, adulta, de Peter Pan revela-se uma leitura extraordinária, não só pelo enquadramento da história numa cidade de Londres sombria e decadente, mas sobretudo, pela forma como usa o fenómeno psicológico de ultrapassar um trauma infantil para tecer a história fantástica do rapaz que nunca cresce.