Nomeado para vários prémios, Hex foi daqueles livros que fez furor quando foi lançado em 2013. Na altura foi altamente recomendado por João Barreiros e adquiri-o, mas só agora lhe peguei. Pelo caminho li das histórias curtas do autor, uma delas premiada com o Hugo: The Day the World Turned Upside Down e You Know How the Story goes.

A história

Numa cidade americana denominada Black Spring, todos os habitantes estão sob uma maldição. Nas ruas da cidade deambula uma bruxa de 400 anos, de olhos e boca cosida. Interferir com a bruxa tem consequências – descoberta feita em várias ocasiões por militares e cientistas que tentaram perceber algo mais. Sempre que existe este tipo de interferência, dezenas de pessoas morrem.

Os habitantes de Black Spring fazem, por isso, todos os possíveis para que a Bruxa não seja descoberta por pessoas fora da cidade, não vá gerar-se outro episódio de curiosidade e pesquisa que mate mais uns habitantes. Para tal, um comité tem um poder quase supremo, de forma a lidar com as crises. Quem ousar interferir com a bruxa é rapidamente castigado e preso por pôr em risco as restantes vidas.

Mas os mais jovens, claro, revoltam-se com esta situação. Com acesso limitado à internet, e com as expectativas de vida cortadas pela existência da bruxa (já que não podem viver noutro local ou viajar) um grupo de jovens resolve fazer experiências controladas e pouco intrusivas. Até um deles se descontrolar e levar as experiências a um nível mais sádico.

Crítica

Hex começa como uma curiosidade. O quotidiano em Black Springs parece normal, excepto pela existência de uma figura obscura que deambula nas ruas, e se materializa dentro da casa das pessoas, murmurando, entre as linhas da boca, lengalengas que provocam suicídios. Esta excentricidade parece quase normal para os habitantes que parecem ter-se habituado a lidar com a rotina insana da figura decrépita.

Mas a narrativa rapidamente cresce em tensão. Por um lado, acompanhamos os jovens que ultrapassam os limites do razoável. Aquilo que começa como uma brincadeira, prossegue despertando as intenções assassinas de um deles. Mas na restante cidade também há os que, temendo a bruxa, interferem para tentar cair nas suas boas graças.

A história alterna vários pontos de vista. Tyler é um dos jovens responsáveis pelos primeiros planos. Mas as suas boas intenções rapidamente são encobertas. O pai, Steve é um homem lógico e pragmático que se vê preso na cidade, responsável por ter trazido a família para aquele local. Griselda é uma sobrevivência de abuso doméstico que idolatriza a bruxa e pretende agradá-la.

Mas a lógica parece combinar pouco com aquela vila. Apesar de o dia-a-dia prosseguir com a figura sombria, a maioria dos habitantes abriga um medo irracional da bruxa. À mais ínfima disrupção temem pela sua vida, e não hesitam em pedir a cabeça de alguém para poderem sobreviver e, talvez, apaziguar a bruxa. As reuniões apelam aos sentimentos mais primitivos de cada um, e o conjunto parece responder como uma multidão enfurecida – algo de que mais tarde sentirão vergonha.

Tyler é um jovem brilhante, crente nos seus ideais de liberdade e justiça. Tanto ele como Steve já se aperceberam da irracionalidade vigente, mas dada a diferente maturidade, lidam de forma oposta. Tyler congemina planos naive para perceber mais. Steve interfere nas reuniões da cidade com argumentos lógicos, racionais e actuais.

Já Griselda, representa todo o medo irracional que vinga naquela cidade. Também ela uma outsider, alguém que se mudou na sua geração para a cidade, Griselda era uma vítima de violência doméstica, até se encontrar em Black Springs. De alguma forma o marido desapareceu e Griselda atribui este desaparecimento às acções da bruxa. Dona do talho da cidade, educa o filho, Jaydon, de forma dúbia. É inegável que o ama, mas as marcas da violência doméstica em ambos faz com que o entendimento seja difícil.

Neste ponto, o autor desenvolve as duas personagens, mãe e filho de forma oposta a Steve e Tyler. Jaydon, apesar de (ou talvez devido a) maltratado pelo pai, recorda a figura de autoridade com uma adoração cega, acumulando sentimentos de ressentimento e demonstrando traços de psicopatia. Já Griselda, sobrevivente dos mal tratos, parece ter desenvolvido uma espécie de Síndrome de Estocolmo pela bruxa – atribui-lhe o afastamento do marido, mas cria uma obsessão que parece ultrapassar o amor pelo filho.

Mas nem tudo é linear, claro. A bruxa terá uma origem sombria, no seguimento de uma sentença impossível de levar a cabo, onde deverá escolher que filho manter vivo. Escolha agreste que estará na origem de todo o fenómeno sobrenatural.

A narrativa de Hex começa como uma introdução à vida em Black Spring, focando-se na forma como um casal recém chegado se apercebe da existência da bruxa e como as autoridades da cidade agem para lhes explicar a maldição que agora paira, também, sobre eles. Este episódio permite expor a dinâmica de chegada, bem como apresentar os detalhes e as consequências de viver em Black Spring – sem descarregar informação, mas colocando-a nas interacções.

O ambiente é, claro de tensão. Ainda que esta tensão pareça, inicialmente, morna e quase habitual. A bruxa mantém o seu padrão diário e recorrendo a apps e câmaras de vigilância é possível prever os contactos e gerir as aparições. Mas claro que algo tinha de mudar para dar impulso à história e são as acções dos jovens que irão mudar o padrão e, consequentemente, aumentar a tensão e a sensação de pânico da população. Neste ponto, o autor trabalha bem o intercalar de momentos mais tensos com episódios em que, tal como as personagens, nos esquecemos da tempestade que ameaça chegar.

Mas a bruxa não é a única personagem estranha naquela cidade. A tensão criou obsessões e segredos, desejos de actos maléficos e perversões. Até que ponto é a bruxa que os provoca, ou é apenas um elemento catalisador para que os habitantes revelem o seu lado mais negro? Tal questionamento surge sobretudo no final, onde a tempestade se revela mais estranha e surreal do que esperado. Nada é absoluto.

E é esse ponto leva-nos ao seguinte – a demonização da mulher no século XVII, demonização essa que é ainda visível em tempos mais actuais, pela forma como Griselda é vista e usada pela população local – alguém digno de pena mas que deve manter-se num papel humilde e decadente, para que os restantes possam praticar caridade.

Ultrapassando este uso de Griselda, existe algo estranho, até repulsivo, como Griselda alimenta de carne a cidade, existindo algumas referências em relação ao corpo volumoso de Griselda e à compra de um paté gorduroso no seu talho. É, das personagens principais, a única que vemos apresentada de forma menor, degradantes e degradada.

Conclusão

Hex é uma história de tensão crescente. Os elementos sobrenaturais, mais propriamente a bruxa e os eventos que provoca, recordam os habitantes todos os dias que as suas vidas podem ser quebradas se se meterem com a bruxa. Esta tensão crescente está presente em todas as acções e provoca decisões baseadas no medo pela própria vida.

A história envolve e leva-nos a progredir para perceber o que irá acontecer a seguir, ainda que não seja perfeita. Há alguns episódios que parecem encaixar menos bem logicamente e algumas personagens são demasiado lineares e simplistas. Confesso que achei o final demasiado surreal, mas no global gostei da leitura e aconselho-a – mais que não seja pelo conceito e pela forma como é explorado.