Autor catalão, Jordi Lafebre já tem algumas obras publicadas em Portugal pela Arte de Autor, como Verões Felizes ou Apesar de Tudo. A primeira referência (em co-autoria com Zidrou) é uma série genial que mostra as nostálgicas e atribuladas viagens de carro em família para o local de férias. A segunda, é um fabuloso retrato de uma longa história de amor. Pegando nestes dois exemplos, a fasquia era alta para Sou o seu silêncio, e o resultado não desiludiu!

Eva Rojas, psicóloga na cidade de Barcelona, está num gabinete. O que não seria estranho dada a profissão da personagem, não fosse ela estar no lugar de paciente. É que dado algumas irregularidades, ela estará a ser avaliada, e claro que a conversa recai sobre os acontecimentos da última semana, sobretudo depois de referir ter visto um cadáver.

Eva terá sido chamada por uma das suas pacientes riquíssimas para a leitura de um testamento em vida, estando em jogo avultados valores em dinheiro, bem como uma empresa de produção de vinho. A visita à quinta da família começa com um encontro estranho com um suposto jardineiro que, afinal, não é menos do que o patriarca, o actual gestor da empresa que age como um poderoso e mulherengo déspota. A postura cria uma misto de sentimentos opostos em Eva e quando finalmente decide encontrar-se com ele na casa, a meio da noite, descobre o seu cadáver.

A partir daqui, o papel de Eva deixa de ser se psicóloga e espectadora, dedicando-se a investigar cada um dos familiares ricaços, tentando perceber traços psicológicos e reunir pistas para o que realmente estará a acontecer. Para além da morte, existem sinais de que algo na empresa estará menos regular.

A história é mirabolante. Por um lado, Eva é uma personagem pouco linear e instável, assombrada pelos fantasmas da sua própria família e, bipolar. Esta combinação irá originar um relato curioso, por vezes cómico e inusitado, onde os episódios rocambolescos se sucedem, causando interesse e envolvimento por parte do leitor.

Ao longo da narrativa, alguns detalhes sobre Eva são explorados, percebendo-se que ouve, constantemente, as vozes das familiares que a educaram – todas mulheres, fortes e determinadas, que se afastaram dos homens, por trauma ou decisão. Para além das vozes, há um facto concreto que vai sendo subentendido ao longo da narrativa para se materializar em algo concreto e que tem um elevado impacto em Eva.

Assombrada pela própria família (que lhe dão vários conselhos), Eva interessa-se pela história da família da sua paciente, sendo que cada membro parece possuir traços muito característicos e estereotipados, com personalidades que parecem uma reprodução da família olímpica dos deuses – facto que a própria refere na sua consulta com o psicólogo que a avalia.

Num primeiro nível, a narrativa apresenta a investigação de um crime. Mas para além dessa componente, mais óbvia, é impossível não comparar o retrato das duas famílias, enquanto se exploram as circunstâncias mentais da própria Eva. A investigação criminal vai dar espaço para dar espaço para expor alguns dos seus traumas e sintomas, havendo um exemplo concreto com a sua reacção ao estar exposta a um cadáver.

As peculiaridades das várias personagens contribuem para criar empatia e envolvimento, numa caracterização que já vimos em outros trabalhos do autor e que funciona muito bem. A par com as peculiaridades, o volume apresenta um desenho expressivo e irrepreensível, fabuloso na oscilação de perspectivas e apresentação de expressões faciais e corporais.

Dadas as características das personagens, a narrativa apresenta momentos bizarros e mirabolantes, simultaneamente estranhos e divertidos, conferindo uma aura leve e envolvente que não é típica numa investigação criminal. Até a própria doença de Eva é apresentada sob uma perspectiva curiosa e excêntrica.

Talvez o defeito do volume esteja na progressão da narrativa, com um final mais apressado, em que alguns episódios parecem mais compactos e dando menos espaço para a história respirar e se processar alguns factos. Talvez esta progressão mais compacta tenha como objectivo o criar de tensão, mas a meu ver, não funcionou totalmente.

Sou o seu silêncio é um livro formidável. Jordi Lafebre consegue pegar numa premissa comum (uma investigação criminal de um ricaço que vem causar tumulto às heranças) mas consegue conferir-lhe contornos muito próprios. Até porque, no final, a história é muito mais do que a investigação, explorando a doença mental e as interacções familiares.