No bosque do espelho é mais um livro típico de Alberto Manguel onde cruza as suas próprias experiências literárias com trechos de livros que leu e que dá a conhecer. Ao longo das suas deambulações literárias parte de géneros literários para opiniões políticas ou sociais, falando de vários autores e do seu papel na sociedade.
Nem sempre temos de compreender todas as palavras de um texto. Sabê-lo-ão os jovens leitores que pegam em livros cuja totalidade do vocabulário não reconhecem, sabê-lo-ão aqueles que enveredam num novo idioma, sabê-lo-ão aqueles que gostam de saltar palavras e envereder por caminhos mais curtos:
Aprendi muito cedo que, a não ser que estejamos a ler com algum outro propósito que não o prazer (como todos, de quando em quando, temos da fazer, pelos nossos pecados), podemos, com toda a segurança, deslizar por pântanos difíceis, cortar caminho por selvas emaranhadas, salvar planuras solenes e aborrecidas e muito simplesmente deixar-nos levar pela vigorosa corrente de um conto.
Um texto não só pode ser compreendido pela leitura parcial, como se pode tornar diferente de cada vez que o lemos, pois o acto de ler e interpretar é diferente das associações que se constroem com a leitura, criando uma visão própria do leitor naquele momento – interpretação que pode vir a ser diferente se o leitor tiver outras experiências.
Um livro torna-se um livro diferente de cada vez que o lemos. Essa Alice da minha primeira infânca foi uma viagem, como a Odisseia ou o Pinóquio, e sempre me senti uma Alice melhor do que um Odisseu ou um boneco de pau. Então chegou a Alice adolescente e eu soube exactamente ao que ela teve de sujeitar-se quando a lebre de Março lhe ofereceu vinho quando não havia vinho na mesa (…).
Bem diferente destes textos iniciais que falam sobre a mutabilidada da experiência da leitura, é o texto que se segue sobre as categorias da leitura, como por exemplo a literatura gay. O autor disserta aqui de forma interessante, mostrando que a categorização pode reduzir os leitores possíveis, sem que na realidade o livro possa ser apreciado por tão curto grupo de leitores:
A noção de «literatura gay» é culpada sob três aspectos: primeiro, porque implica uma categoria literária streita, baseada na sexualidade ou dos seus autores ou dos seus personagens, segundo porque implica uma categoria sexual estreita que de alguma forma encontrou a sua definição sob uma forma literária; terceiro, porque implica uma categoria política estreita que defende um conjunto restrito de direitos humanos para um grupo sexual específico. E, no entanto, não importa o quaõ recente seja, a noção de «literatura gay» existe na mente do público. Há certas livrarias que têm estantes para a «literatura gay», certas editoras que publicação colecções de «literatura gay» e há revistas e jornais que regularmente colecções de «literatura gay» e há revistas e jornais que regularmente publicam histórias e poemas sob a rubrica «literatura gay».
Tal como falamos de literatura gay falamos de literatura africana. Ainda que essa etiqueta possa indicar que existem elementos para empatizar por um grupo de leitores, definir um livro de ficção científica como literatura africana só porque o autor é de ascendência africana pode tornar-se redutor e fazer com que o livro não atinja o verdadeiro público a que se destina. A etiqueta pode derivar da linearidade da etiqueta colocada no autor.
Manguel reúne, também, neste livro, textos literários com alguns detalhes políticos. Não falta um texto apaixonado sobre o papel de Che, ou de Córtazar (cujas deambulações directamente políticas não tiveram grande sucesso), nem exemplos do que alguns autores transmitem sob o papel da mulher
A condenação da paixão erótica, ad própria carne, permite às sociedades mais patriacais estigmatizar a mulher como a tentadora, como a Mãe Eva, culpada da queda diária de Adão. Porque ela é digna da censura, o homem tem o direito natural de a governar, e qualquer desvio desta lei – quer pela mulher quer pelo homem – é punível como traição e pecado. Todo um aparelho de censura é construído para proteger os estereótipos heterossexuais definidos pelo masculino e, como consequência, a misogenia e a homofobia são ambas justificadas e encorajadas, atribuindo às mulheres, e aos homossexuais papéis restritos e depreciativos.
Ou da pornografia
A pornografia requer este padrão duplo. Na pornografia, o erótico não deve ser parte integrante de um mundo em que tanto os homens como as mulheres, homossexuais e heterossexuais, procuram uma compreensão mais profunda de si próprios e do outro. Para ser pornografáfico o erótico tem de ser amputado do seu contexto e aderir às estritas definições clínicas do que é condenado. (…) Esta é a razão por que as nossas sociedades permitem que a pornografia, que abraça as noções oficiais do comportamento «normal» ou «decente» exista em certos contextos. Mas perseguem com extremo zelo as expressões artísticas eróticas em que a autoridade dos que ocupam o poder é posta implicitamente em causa. Revistas «com raparigas» podiam ser compradas quase em qualquer esquina, enquanto o Ulisses teve de enfrentar em tribunal acusações de obscenidade.
Este é um livro bem diverso. Fala-se do contexto da obra (tal como um quadro que não consegue ser dissociado da sala de exposição onde é exposto), assim como do contexto forçado na obra (a tal etiqueta), e o contexto do próprio leitor:
Sou constantemente outra pessoa, a pessoa que dobra a esquina, a pessoa que espera na sala ao lado, depois de amanhã, a pessoa que vai lamentar ou aprovar o que faço hoje, mas que nunca o repetirá. Aproximo-me de uma obra de arte com a minha bagagem de história e de geografia, mas a babagem que trago está sempre a mudar e permite-me ver outra coisa na obra, quase todas as vezes. Por isso não confio nos rótulos. A obra de arte em si mesma não contém um julgamento.
Também os escritores podem ser dissociados da sua obra. Existem vários casos em que os valores que demonstram na escrita, a sensibilidade para o com outro, não a demonstram na vida real, apresentando valores que parecem incoerentes com a obra (sob Llosa):
E fiquei chocado com a oposição entre as suas opiniões na ficção que escrevia e as opiniões que apresentava na imprensa – como se, sendo um fotógrafo sem visão, fosse cego para a realidade humana que as suas lentes tão poderosamente captavam.
Manguel aproveita os livros e a escrita para falar de humanidade, dissertando, portanto, sobre a sociedade e o que a obra transparece em determinados contextos. Por vezes, afasta-se, neste conjunto de textos, do que é a literatura e aproveita para falar de aspectos como a tolerância (uma opinião que se assemelha à minha para o conceito de pena – algo que diminui o objecto alvo dessa pena):
Não sou defensor da tolerância, no sentido em que muitas vezes usamos a palavra (…). A tolerância, que no passado geralmente implicava uma posição anti-hierárquica, implica agora frequentemente uma hierarquia, alguém que condescende em ser tolerante, em relação a outrém e que requer gratidão por isso. A tolerância é um tipo de filantropia que acaba por se autoconsumir.
Da tolerância e do estereótipo, apresenta-se outra texto em q ue se disserta sobre o aspecto feminino (apresentado em muitos livros como ofensivo):
Mark, na verdade, queria alguém que se satisfizesse em fundir-se nele, e que não buscasse imprimir a sua própria personalidade sobre a dele, nem desenvolver um ambiente independente. Ele tinha a capacidade de saber que o ponto onde se coloca uma mãe deve ser amplamente diferente que seja a sua devoção; ele tinha experiência suficiente de convívio com homens casados para se interrogar se poderia encontrar a mulher que procurava num mundo de pós-guerra; no entanto, preservava e consentia-se uma esperança de que ainda existiam mulheres antiquadas e começava a perguntar onde poderia encontrar uma tal companhia auxiliadora.
Este “belo” exemplo foi recolhido por Manguel de The Red Redmaynes, um romance britânico de detectives. Mas não é o único. Se Padre Brown de Chesterton consegue ter boas ideias e sentimentos, consegue, também, cair nestas ideias (o que não é totalmente de estranhar, considerando os ideais vigentes na época).
Depois de uma panóplia de ideias, Manguel termina com um pesadelo – ficções em que a leitura é castrada, falando de The Martian Chronicles (e no formidável conto There will come soft rains, Usher II de Poe e de Fahrenheit 451.
Menos centrado nos livros, este volume apresenta uma série de ideias do autor sobre o papel da leitura, aproveitando para dissertar sobre sociedade e preconceito. No Bosque do espelho foi publicado pela D. Quixote.
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