Recentemente foi inaugurado o Museu da Lua, em Oeiras. Aproveitando a instalação artísticas de Luke Jerram, a Embaixada Britânica e o Município de Oeiras organizaram um evento em que se falou sobretudo de ciência. Mas a meio do programa também se falou de ficção científica, através de um conto de João Barreiros em que descreve como seria um dia na Lua.
O conto chama-se Efemérides e pode ser encontrado no livro Se acordar antes de morrer. É um conto irónico, como não podia deixar de ser a um conto de João Barreiros, mas é, também, um conto carregado de referências científicas que apresenta, de forma ligeira e bem disposta, as dificuldades de viver fora do planeta Terra. É, no meu entendimento, um conto que pode ser um bom exemplo de como a ficção científica pode ser usada para passar conhecimento científico. E, porque não usar, também, as incorreções científicas, demostrando-as?
All organ systems are affected by exposure to extra-terrestrial environments. Alterations to cardiovascular physiology with reduced gravity manifest acutely and chronically [1]. Reduced-gravity environments cause the cardiovascular system to undergo adaptive functional and structural changes. Microgravity induces a reduction in hydrostatic pressure, causing a cephalic redistribution of blood and body fluids. This headward shift is responsible for the ‘puffy-face & bird-leg’ appearance of astronauts in space. The cardiovascular system adapts to microgravity by reducing blood volume by approximately 20%, which is in part responsible for the orthostatic intolerance commonly found post-spaceflight. A reduction in heart size was also observed in microgravity.
A comparison between the 2010 and 2005 basic life support guidelines during simulated hypogravity and microgravity, Russomano, et al., Extrem Physiol Med. 2013; 2: 11.
Tendo em vista a exploração espacial, vários trabalhos científicos têm sido desenvolvidos com o objectivo de perceber quais seriam as consequências, no corpo humano, de viver em ambientes de baixa gravidade. A maior parte fala de diminuição do coração e da densidade óssea, bem como do aumento da pressão ocular.
Despite the extensive use of exercise countermeasures, astronauts still return from 6 months ISS missions showing space deconditioning effects. Examples of these effects include decreased calf muscle volume and power, loss of bone mineral density and reduction of peak oxygen uptake
Human Biomechanical and Cardiopulmonary Responses to Partial Gravity – A Systematic Review, Richter, et al., Front Physiol. 2017; 8: 583.
Especula-se (ainda que não tenha encontrado nenhum artigo científico concreto) que crescer noutro planeta de baixa gravidade leve a uma maior altura (parece uma conclusão lógica que, sob o efeito constrangedor de uma menor gravidade, as estruturas biológicas se estendem-se mais). Mas decerto levará a uma menor calcificação dos ossos, deixando-os quebradiços. Se tais alterações já são significativas passados meros meses, imaginem para quem crescesse num local com menor gravidade. Como a Lua. Ou Marte.
Frágil como é, um triste arranjo de palitos com uma cabeça de alfinete eriçada no topo, a gravidade dava-lhe cabo do coração em poucas horas. Sem falar no risco de fracturas múltiplas à mais pequena escorregadela. Se Russell voltasse à Terra, ele que é o produto da primeira geração de lunares, um espirro matava-o. Um grão de pólen fá-lo-ia morrer de choque anafilático.
Efemérides,João Barreiros
São estes pressupostos que se aliam à imaginação e ganham forma em Efemérides. Num único parágrafo deparamo-nos com as consequências de uma vida em baixa gravidade. Consequências essas suportadas pela literatura científica que encontrei sobre o assunto (estejam à vontade para despejar outras referências). Mas o conto não se centra só nas alterações fisiológicas ao corpo humano. Centra-se, também, nas consequências a tal quotidiano.
We found direct and definitive evidence for surface-exposed water ice in the lunar polar regions. The abundance and distribution of ice on the Moon are distinct from those on other airless bodies in the inner solar system such as Mercury and Ceres, which may be associated with the unique formation and evolution process of our Moon. These ice deposits might be utilized as an in situ resource in future exploration of the Moon.
Direct evidence of surface exposed water ice in the lunar polar regions, Shuai Li, et al., PNAS September 4, 2018 115 (36) 8907-8912; first published August 20, 2018.
Existindo água na Lua que possa ser usada para sustentar a vida humana, decerto teria de ser racionada.
Tem de durar séculos. As gerações seguintes também têm dierito à sua conta de esponjas húmidas. Por isso não há brincadeiras neste balneário. Ninguém atira respingos de água à cabeça uns dos outros. Fazer semelhante disparate é crime. Dá direito a sanções, a pontos negros, a dívidas à colectividade a ser descontadas assim que qualquer um deles entrar na fase produtiva das suas vidas.
Efemérides, João Barreiros.
E dada a escassez, decerto que qualquer resto orgânico seria reutilizado. Mesmo com os riscos que pudessem daí advir (a utilização de fezes humanas na agrícultura é uma prática perigosa por poder facilitar a propagação de doenças):
Depois de lavados e limpos com uma serradura estéril, cada um tem ainda o dever de selar o respectivo saco onde guardaram a matéria fecal, colocá-lo na carrinha que o levará aos jardins hidropónicos e assegurar assim que um dia, num futuro próximo, aquilo que hoje despejaram voltará em triunfo aos respectivos estômagos, transformado em celulose e proteína vegetal.
Efemérides, João Barreiros
Carregada de afirmações caricatas como só a ficção pode ser, este conto de João Barreiros é um, entre tantos outros, que pode ser usado para discutir as possibilidades científicas aligeirando cada um dos elementos que constituem a premissa – E se o homem vivesse na Lua?