Os dois volumes de O Expresso do Amanhã abrem a colecção Novela Gráfica de 2020. Trata-se de uma história simultaneamente futurista e apocalíptica que nos apresenta um planeta sobre o qual se abateu uma catástrofe ambiental que transformou o clima. A temperatura ambiente ronda os -80ºC e a paisagem está repleta de neve e gelo. É nesta realidade fria que a humanidade tenta sobreviver, no interior de um comboio de movimento perpétuo.

Os dois volumes apresentam-nos três histórias nesta realidade. A história do primeiro volume é independente e introduz-nos este futuro deprimente: por um lado a paisagem é desoladora e monótona, por outro, os únicos espécimes do ser humano encontram-se no interior do comboio. Milhas após milhas de viagem e nada de move.

Adicionalmente, a forma como as personagens são apresentadas e a narrativa se desenvolve também são deprimentes revelando pouca fé na humanidade. Ao longo do longo comboio, os humanos encontram-se dispostos como numa hierarquia: à frente os mais ricos que tomam as decisões por todos, atrás os que se amontoam nas carruagens sem comida, sem luz e sem água.

A história começa com um homem originário das carruagens mais traseiras que conseguiu atravessar para algumas mais abastadas. É imediatamente colocado sob quarentena, um pretexto para o reter e diminuir o contacto com outros. Simultaneamente, uma mulher das carruagens do meio aparece para saber algo mais sobre este desconhecido, ficando, também ela retida.

No segundo livro apresenta-se-nos um explorador que ousou questionar as missões a que é sujeito. O comboio pára, por vezes, descrevendo-se estes eventos como simulações de embate – uma forma de garantir o medo entre a população e a afastar da depressão. Mas nestas paragens exploradores são enviados em missões pouco proveitosas e de intenções suspeitas. Também nesta segunda história o explorador se cruza com uma mulher, neste caso filha de uma posição importante, que lhe garantirá maior visibilidade para expressar as suas dúvidas e questões.

As duas narrativas possuem uma mesma linha orientadora, utilizando homens de condições inferior mas aventureiros que conseguem ter acesso a melhores condições através das mulheres que por eles se interessam. As mulheres revelam-se indomáveis e desobedientes, mas nem sempre levadas a sério. Pelo menos no caso da segunda história, onde a mulher consegue ser o catalisador, mas também, a figura oculta.

Em ambos os livros a hierarquia superior no comboio é descrita como corrupta e corrompida, vivendo de champanhe e caviar, enquanto outros passam fome e recorrem ao canibalismo. Por forma a garantir a população controlada criam-se simulacros de uma outra realidade (passada) ou com referências a ficções e mitologias. Estes simulacros são prémios muito cobiçados, mas que apenas são distribuídos por lotaria.
Em O expresso do Amanhã a humanidade é decadente – a elite sabe da pouca esperança que o mundo reserva à humanidade e aproveita a sua posição para se distrair com todas as mordomias possíveis. Qualquer voz contrária é reprimida duramente, os julgamentos são falsos, e o povo é distraído com uma lotaria que promete uns curtos momentos de abstracção.

A premissa é interessante e carregada de possibilidades. Mas a concretização está cheia de clichés, numa mesma narrativa que se duplica por duas histórias de final diferente. No primeiro volume apresenta-se uma perseguição ao longo de várias carruagens – uma linha simples que tem um foco e justifica a sucessão de episódios movimentados. No segundo a narrativa apresenta-se mais complexa, com golpes políticos mas perde-se numa jigajoga de poderes.
Os dois volumes possuem interesse pela premissa de um comboio de movimento perpétuo numa paisagem gelada e interminável. Infelizmente, a narrativa não traz muito de novo e tem demasiados clichés. Gostaria de ter visto esta premissa desenvolvida numa vertente mais humana e focada em conflitos no comboio, ao invés de seguir um homem em fuga através de várias carruagens.

Em termos visuais, as imagens acompanham bem a narrativa, focando-se ora nas personagens (e nas suas expressões) ora nas infindáveis paisagens brancas. Nos desenhos a preto e branco joga-se com as sombras e a solidez dos desenhos, o que funciona bem com a premissa das histórias.
Em suma, até gostei q.b. da leitura, ainda que não seja, de longe, uma das melhores leituras destes meses. O Expresso do Amanhã foi publicado em dois volumes pela parceria da Levoir com o jornal Público.