
Este é daqueles livros que não teria pegado se não tivesse viste a referência no blog do Fernando Dordio. Ainda que a premissa narrativa esteja dentro do estilo de que gosto, o visual é um pouco experimental, e a edição (em capa mole e formato mais pequeno) também não se revela muito atraente. É, no entanto, uma boa leitura, que nos pode levar a questionar vários pontos sobre crime e castigo em sociedade.
A história
A acção intercala entre duas histórias paralelas que decorrem num futuro indeterminado e num mesmo local – uma enorme cavidade terrestre transformada em prisão, onde se colocam todos os criminosos. Esta prisão é uma enorme e degradada cidade, cheia de restos tecnológicos onde impera a lei do mais forte. Existe, claro, vigilância, bem como guardas, mas estes estão praticamente ausentes do sistema.
Numa das linhas narrativas encontramos um homem condenado por traficar drogas. Apesar do seu diminuto papel no esquema, é julgado como sendo o chefe do esquema, usando a sua rota de carteiro para a distribuição de produto. Pouco violento, incapaz de se impor, rapidamente se vê em apuros e obrigado a dar a outros o resultado dos seus dias de trabalho.
Em paralelos encontramos um eficaz duo de criminosos que fazem pequenos serviços para um homem perigoso. Para além da remuneração em cada trabalho, têm como principal objectivo a aquisição de um lendário mapa que lhes indicará um caminho para fora deste buraco prisional, onde poderão começar uma nova vida.
A narrativa
A abordagem de intercalar duas narrativas, seguindo, por vezes, uma personagem secundária, permite dar uma visão ao leitor mais abrangente sobre o mundo retratado. Para além de alternar entre personagens, a história também não é totalmente linear do ponto de vista temporal, recorrendo a pequenas recordações para nos fornecer mais informação.
A história acompanha as personagens, mas não nos fornece grandes dados sobre os seus pensamentos. Percebemos pela forma como agem, interagem, pelas conversas e, sobretudo, pelos silêncios, quais as suas motivações. A narrativa consegue, desta forma, transmitir empatia, alterando entre episódios mais movimentados (e violentos) ou episódios mais introspectivos. Apesar dos momentos mais pausados e pessoais, sente-se um aumento na tensão aquando das interacções entre personagens, o que vai justificar um escalar de violência global.
A visão do leitor é, portanto, a visão das personagens, não havendo explicações adicionais para o mundo prisional que se nos apresenta, nem para todas as circunstâncias associadas às personagens. Somos apenas expostos àquilo que contam nas suas conversas – uma perspectiva fechada na sua visão que não nos permite perceber a origem.
O visual
Under-earth não é visualmente muito atractivo. Em termos de edição é um livro de formato relativamente pequeno, em capa mole e de cores acizentadas. Esta capa corresponde, no entanto, ao interior do livro, quer em termos narrativos, quer em temos visuais – um ambiente opressivo, fechado, sem esperanças e com poucas alegrias.
O desenho do interior é equivalente à capa. Predomina o cinzento acastanhado, pontuado, por vezes, por outras cores, sobretudo amarelo e vermelho. Não existe grande detalhe no desenho ou texturas, mas em contrapartida, existe foco nas expressões, sobretudo nas interacções entre personagens.
A prisão
O sistema prisional pode ser encarada como uma forma de punição ou como uma forma de correcção (com o objectivo de restaurar o ser humano). Se um ser humano é incapaz de viver em sociedade, sem violar os limites dos que o rodeiam, deve isolar-se durante algum tempo para poder rever as suas acções.
Em sistemas prisionais com intuito correctivo, com o objectivo de recuperação e integração dos criminosos, o quotidiano é focado na normalidade social e na limpeza de comportamentos agressivos entre indivíduos. Não é o caso em Under-Earth. Aqui os criminosos são retirados definitivamente, empurrados para um mundo onde as máfias proliferam, e os indivíduos acabam por ser recompensados por se envolver no ciclo de violência e desumanização progressiva. Mesmo os que aspiram à normalidade devem, acima de tudo, chafurdar para sobreviver.
E é este o sentimento que transpira em Under-Earth – um sistema sem esperança que corrompe ainda mais os seres humanos que nele se vêem envolvidos, quebrando bons sentimentos que possam trazer e castrando qualquer possibilidade de uma vida melhor ou de um futuro. Mas, ainda assim (ou por causa disso) surgem raros mas fortes laços, a que algumas personagens se agarram para manter a sua humanidade.
Conclusão
Under-earth apresenta uma história que pode ser considerada distópica. Neste caso, sobre a sociedade não sabemos o suficiente, mas a realidade fechada em que as personagens se encontram é claramente opressora e assustadora, controlando muito pouco da sua própria existência neste buraco transformado em cidade prisão.
Em termos narrativos, a história não é perfeita, apresentando um final que não é totalmente satisfatório. Ainda assim, a perspectiva fechada com que é apresentada (a das personagens, sem informação adicional) contribui para a criação de um ambiente opressivo, e para o estabelecer de empatia para com as personagens – algo importante para nos fazer ler as quase 570 páginas de história. O desenho não é muito atraente mas capta expressões e contribui para a empatia, oscilando entre o tom cinzento (e opressivo) e os episódios com mais uma cor, que destacam o sentimento geral em determinadas situações.
É uma boa leitura, com algumas imperfeições que, apesar do ambiente distópico, acaba (por oposição) se centrar na eterna tentativa de manter alguma humanidade.
