Eis o mais recente trabalho da dupla, Ed Brubaker e Sean Phillips, a ser publicado pela Image no início de Maio. Esta leitura foi realizada com uma ARC (advanced reading copy) no formato digital. Comparando com uma leitura recente, destes autores, Pulp, Friend of the Devil pareceu-me superior, contendo elementos narrativos que recordam The Fade Out, Fatale ou Criminal.
Contexto histórico
Os anos 70 foram conhecidos, nos Estados Unidos da América, por uma intensa criação de cultos religiosos, encabeçados por homens carismáticos e manipuladores. Ainda que muitos destes cultos sejam inofensivos, normalmente tentam captar novos membros com um sistema de regras muito próprio que induz ao fanatismo. Os membros destes grupos acabam por seguir cegamente o seu líder, sendo que esta lealdade pode ser usada para outros fins.
A História
Friend of the Devil centra-se em Ethan, um ex-agente do FBI que agora investiga casos por contra própria, nos limites da legalidade. Os casos chegam-lhe por amigos ou conhecidos, centrando-se sobretudo naqueles que, por variadíssimas razões, não são investigados pelas entidades oficiais. Assim começa a história, com Ethan na biblioteca, pretendendo ver a lista de últimas requisições da pessoa que procura. Apesar deste pedido não ser totalmente legal, Ethan consegue obter a cooperação da bibliotecária com a qual simpatiza.
Resolvido o caso, Ethan resolve rever a bibliotecária, descobrindo que a simpatia foi mútua. Assim começa um romance em que ambos exploram filmes de série B dos loucos anos 70. A felicidade não dura muito. É exactamente num destes filmes que se reencontra uma rapariga desaparecida, que o vai levar a iniciar uma investigação inicialmente inócua, que adquire rapidamente traços de perigo, que se intensificam a cada nova pista. Ethan desvenda, lentamente, a existência de um culto violento onde o sexo é usado de forma doentia.
A narrativa
Tal como noutras histórias da dupla, a narrativa, tensa e pesada, desenvolve-se lentamente, adicionando, em cada episódio, novos detalhes que, não desvendando o final, nos fazem sentir o caminho negro para o qual a personagem se dirige. Tal como noutras histórias que envolvem investigadores, acompanhamos a descoberta de novas pistas e novas ligações em torno de um pequeno grupo de personagens ou situações – um género de círculo repetitivo que chega ao centro de forma abrupta quando atinge o pico de tensão.
A história é contada pela perspectiva do detective, acompanhando o seu ponto de vista limitado, que nos permite seguir a investigação e ser tão surpreendidos quanto a personagem principal. Ainda assim, percebemos que a história não está a ser contada no tempo presente, e a personagem vai introduzindo pequenos comentários que antecipam alguns episódios ou detalhes. A narrativa oscila entre os diálogos, e a narrativa da própria personagem, que se refere aos acontecimentos passados.
Esta forma narrativa é comum em história de detectives, sobretudo em filmes do género, dando à história uma aura de inevitabilidade do destino. Para além deste elemento, enquanto história de detectives, Friend of the Devil centra-se num homem marcado – alguém que já assistiu a episódios indescritíveis que o traumatizaram e impossibilitam de ter um relacionamento amoroso inocente e duradoiro. A própria personagem reconhece este facto deste o início da história.
Enquanto que, em Criminal, a história desenvolve-se como a inevitabilidade da criminalidade, levando a personagem a tentar afastar-se desse mundo, mas incapaz de o fazer pelas circunstâncias em que vive e pelas escolhas passadas. Aqui, sentimentos também a inevitabilidade das circunstâncias, mas numa perspectiva diferente. Ainda assim, o crescente de tensão é semelhante, levando ao lento encurralar da personagem – algo que, a meu ver, não funcionou tão bem em Pulp (apesar de ter achado que as diferenças narrativas produziram uma história diferente e refrescante).
É, também, impossível, não comparar esta história com The Fade Out ou Fatale. Ainda que estas sejam séries, histórias mais longas, e este Friend of the Devil seja uma história de volume único (e, consequentemente, de narrativa mais simples, embora no Universo Reckless) tal como em Fatale, vamos seguindo uma personagem feminina num percurso misterioso de culto, onde cada novo detalhe é usado para tornar a narrativa ainda mais negra. Não existem, claro os elementos fantásticos, e, em Friend of the Devil, a personagem é feminina nunca é percepcionada directamente, ora através de descrições de outros, ora através de outras lentes, sejam fotografias, sejam filmagens.
E é exactamente nas filmagens que Friend of the Devil toca em The Fade Out, levando-nos para os bastidores pútrido das filmagens, onde favores sexuais são usados em troca de participação em filmes, ou onde as filmagens são usadas como fachada para outras actividades, como a comercialização de droga, e se as vítimas femininas são corrompidas, num caminho sem volta.
Apesar dos bons elementos narrativos que se reconhecem no trabalho da dupla, existem alguns detalhes que, a meu ver, não funcionam a 100%. Por um lado, a revelação final é abrupta e poderia ter sido mais trabalhada (talvez seja um reflexo da falta de espaço para se desenvolver), por outro, existe uma influência nazi que é usada como origem de todo o mal e que aqui seria desnecessária, funcionando, a meu ver, como um cliché mal usado.
Conclusão
Enquanto volume único, esta história de Brubaker e Phillips no Universo Reckless não desilude e encontra-se acima da média de muitas outras leituras de volume único publicadas pela Image. Encontramos a usual tensão narrativa, um bom domínio da história, e uma inevitabilidade nos acontecimentos que fazem sentidos. Gostaria, no entanto, que alguns elementos tivessem sido explorados por mais páginas fornecendo uma maior complexidade, como no caso das melhores obras da dupla, como de The Fade Out.