
O Jeff Lemire que conheço trabalha em dois registos: um mais realista que retrata a dura vivência em zonas frias e inóspitas; e um mais fantasioso que cria grandes histórias de ficção científica e fantasia no centro de fortes mitologias. Em ambos os registos, o autor constrói de forma exímia boas personagens, usando episódios passados e passagens introspectivas. Olhando para a narrativa, esta alterna entre as perspectivas das várias personagens com o intuito de conceder, ao leitor, um maior entendimento da história.

Bem, e afinal quão diferente este Gideon Falls é dos restantes livros de Jeff Lemire? Múltiplas personagens, diferentes perspectivas e uma mitologia que parece contaminar toda a narrativa. Estas são as semelhanças. A diferença? O tom negro, carregado de elementos de horror que ganham uma dimensão cada vez maior ao longo do volume.
De personagem em personagem, vamos tomando conhecimento de um Celeiro Negro que aparece e desaparece. Teorias da conspiração, desaparecimentos, mortes estranhas, seitas e casos de loucura. O Celeiro Negro aparece associado a todas estas coisas. Os relatos parecem saídos da mente de um louco, fazendo com que alguns, os que não contactaram com o Celeiro, eliminem a hipótese de tal estrutura ser real.

A narrativa oscila sobretudo entre duas personagens – um jovem louco que percorre os caixotes do lixo da cidade em busca de peças de algo, e um padre que acaba de chegar a uma nova cidade, sem saber o que aconteceu a quem anteriormente ocupou o cargo. Se um tem um passado associado ao Celeiro e a ele permanece ligado, o outro acabará por investigar esta estrutura ao ouvir sucessivos rumores.

O enredo está carregado de segredos do passado que irão determinar o comportamento das personagens e a forma como reagem aos acontecimentos. Esta necessidade de contextualizar as duas linhas narrativas torna o início da história mais lento, mas também intrigante.

Com alguma influência Lovecraftiana (e inspiração em Twin Peaks segundo o próprio autor) Gideon Falls parece apresentar, com o Celeiro Negro, uma outra dimensão à realidade – uma dimensão que com ela carrega loucura e terror. Mas um terror quase inconsciente. Pausado mas tão presente que se transmite para a pele do leitor, deixando uma aura de inquietação.

O desenho é quase sempre muito realista, de cores muito acizentadas, salvo pelo ocasional vermelho vivo que tem um objectivo claro de realçar determinados acontecimentos. E ainda que não seja o meu género de desenho (pelo traço demasiado leve e pela pouca definição das imagens), neste caso conjuga-se muito bem com a narrativa, expressando a mesma pouca definição do horror que está em todas as páginas.

Então, e afinal, o que é Gideon Falls? Bem, por este primeiro volume, é uma série de terror pausado, sem gore (ainda que existam episódios mais explícitos) onde uma loucura obsessiva parece atingir as personagens. É também um enigma com várias faces em torno do qual se vão revelando detalhes. Mas, sobretudo, é uma história inquietante que promete grandes reviravoltas. Se cumprir todas as expectativas pode facilmente tornar-se uma das grandes série de terror em curso.
A série Gideon Falls encontra-se a ser publicada pela G Floy.