
Há uma meia dúzia de livros, ditos excepcionais, que ainda não li dada a sua elevada fama. Este era um deles e tenho a dizer que ultrapassou todas as expectativas. Entre os desenhos fabulosos e a história de duas personagens que se cruza com uma série de histórias fantásticas, Habibi é, sem dúvida, uma das melhores leituras deste ano.

Não costumo começar pelo desenho, mas aqui é algo de grande destaque. A preto e branco o autor tece páginas que são verdadeiras obras de arte, apresentando diferentes desenhos que, embora mantenham algo de comum, se tornam distintivas com a evolução da história, concedendo vários elementos visuais inovadores ao longo da narrativa.

Dada a história centrar-se no mundo árabe, é normal que se vejam vários elementos visuais com influência árabe, mas também um género de mitologia associada às letras que se vão desconstruindo em fabulosas imagens. Esta peculiar perspectiva da mitologia encontra-se não só nos desenhos, mas também na narrativa, casando ambas as vertentes de forma perfeita, nalguns dos momentos mais decisivos da história.

A par com as letras árabes encontramos símbolos religiosos que vão sendo interpretados e usados de forma diferente, associados a histórias religiosas, com moralidades diferentes. Estas letras dão origem a palavras, curvadas e desenhadas que, por vezes, compõem o detalhe de desenhos mais elaborados.

A história segue duas personagens: uma rapariga e um rapaz que fogem do mercado de escravos para o deserto. Aqui encontram abrigo num barco perdido no meio das dunas que lhes dá, sobretudo, refúgio. Mas onde encontrar comida e bebida no meio do deserto? Desde cedo que a função do rapaz é encontrar água, enquanto que a rapariga, Dodola, se encarrega da comida. Se, inicialmente, conseguia usar a sua fragilidade para conseguir alguns alimentos, rapidamente os mercadores se começam a aproveitar para conseguir favores de teor sexual.

Mas esta parcela é apenas uma percentagem da história. Dodola nem sempre foi uma escrava fugida, mas uma rapariga pobre vendida demasiado jovem como esposa pelos seus pais. A sua condição mudou quando o marido foi assaltado e morto. Os assaltantes levaram-na como mais um bem para vender no mercado. E é aqui que começa a tomar conta do bebé, Zam, apegando-se a ele e levando-o quando escapa.

Com o crescimento dos dois vem também a fama, entre os mercadores, de uma perigosa bruxa que, no deserto, proporciona favores a troco de comida. É esta fama que leva o entediado sultão a ordenar que a tragam para o seu harém. Separada de Zam, sem obedecer à hierarquia do harém, Dodola cria vários inimigos que vêm nela uma personagem que pode gerar um herdeiro e trazer sérios problemas de poder.

Paralelamente, Zam, separado de Dodola, procura ganhar o seu próprio sustento na vila mais próxima, realizando pequenas tarefas a todos os que se disponham a pagar. No entanto não é suficiente e acaba a passar fome na rua. A sua escapatória será um grupo de eunucos que canta pelas ruas e recebe esmolas, mas para poder ficar com eles terá se passar pela mesma operação.

Sem querer revelar mais do enredo, Habibi é uma epopeia, em que as duas personagens vão conhecendo várias realidades, entre encontros e desencontros. Dodola costumava contar uma história diferente todas as noites a Zam, e assim o enredo diverge nestes pontos apresentando-nos, também, a nós estas histórias fabulosas que cruzam episódios religiosos com invenção, mas interligando-as com o episódio que está a decorrer.

Para além de apresentar estas histórias fabulosas, a narrativa não é temporalmente linear. Os episódios vão sendo saltando entre o passado e o presente, pelo menos na primeira parte do livro. Após a separação das duas personagens estes saltos temporais diminuem. Inicialmente considerei estes saltos temporais algo confusos, mas rapidamente ultrapassamos esse detalhe.

Ao longo das aventuras e desventuras de Dodola e Zam exploram-se vários temas sociais. Por um lado temos o relacionamento entre as diferentes facções da sociedade, sejam por divisão racial ou de género, por outro temos o casamento infantil, os escravos ou os eunucos.

E nesta divisão por género é impossível não falar da condição feminina e do seu papel redutor no sexo. Vendida pelos pais demasiado jovem, traficada, objectivada pelos mercadores, reduzida a concubina pelo sultão, vista como uma bruxa prostituta pelas restantes concubinas. O papel de Dodola, apesar da sua força e rebeldia, parece ser sempre reduzido à sua sexualidade, usando-a, ora passiva, ora activamente para conseguir sobreviver num mundo de homens.

Por sua vez, os eunucos, parecem um grupo à parte. Castrados, começam a apresentar algumas características femininas, usando-as para se ridicularizarem e assim conseguirem a tradicional esmola. Mas não será esta a única fonte de rendimento, usando as suas diferenças para se prostituírem à noite.

Mas Habibi é muito mais do que as circunstâncias das vidas de Dodola e Zam. É uma epopeia carregada de sentimento e emoção que nos faz sentir empatia para com ambas as personagens. É, também, uma apresentação de uma realidade carregada de preconceito e injustiça, onde o destino é traçado de acordo com algumas características corporais. Mas é, sobretudo, uma história esmagadora!

Habibi encontra-se publicado em Portugal pela Editora Devir.
Posso dizer que esta foi a melhor leitura que fiz este ano.
li a versão inglesa mas muito bom, não conseguia parar de ler.
ilustrações lindissimas e pelo que li este livro demorou anos a ser finalizado pelo autor.