O Fórum Fantástico esteve finalmente de volta, tendo decorrido entre os dias 8 e 10 de Outubro na Biblioteca Orlando Ribeiro, local habitual. Tal como em anos anteriores, participei na sessão de As Escolhas do Ano, onde falamos sobre as melhores leituras. Este ano ficou marcado pela ausência de João Barreiros, tendo esta sessão decorrido conjuntamente com Artur Coelho e Rogério Ribeiro.
Não tendo havido Fórum Fantástico o ano passado, a escolha foi particularmente difícil, pois referia-se portanto às leituras de dois anos. No meu caso, ficaram muitos bons livros de fora, tanto de autores nacionais como estrangeiros. Como já é habitual, eis alguma informação sobre os livros que escolhi.
Ficção
How to Pass as Human
Publicado pela Dark Horse, How to pass as Human é uma leitura peculiar que dá voz a um andróide que tem, como missão, fazer-se passar por humano. Estando em constante diminuição de bateria, este andróide decide-se a criar um diário onde faz um relato autobiográfico da experiência, intercalando este relato com uma série de análises sobre os humanos.
Estas análises apresentam análises estatísticas e padrões de comportamento, complementando-as com possíveis conclusões ou explicações: como estar no local de trabalho (tendo uma boa prestação, mas não excessiva para não se ser alvo de chacota pelos colegas), como interagir, como deixar o caos tomar conta da casa, uma divisão de cada vez.
A leitura é leve e divertida, mantendo-se interessante, mais pelas análises (que são, do ponto de vista humano, irónicas), do que pelo relato autobiográfico.
Eis comentário mais completo sobre o livro.
Memory Police
Esta foi uma das grandes leituras dos últimos tempos. Ainda li em inglês, antes de ter percebido que o livro foi publicado em Portugal pela Relógio d’água.
Trata-se de uma distopia que decorre numa ilha oriental sem nome declarado. A opressão que a personagem sente é quase normal – pelo menos existe desde de que se recorda. Nesta distopia, existe um organismo do estado capaz de decidir que objectos devem ser eliminados da memória dos cidadãos.
Com a ausência da memória do objecto, também outras memórias associadas são perdidas, criando-se um vazio no seu lugar.
Existem, no entanto, alguns cidadãos incapazes de esquecer e que, portanto, devem ser eliminados. Ou pelo menos, desaparecer.
Eis comentário mais completo sobre o livro.
Mexican Gothic
Esta história leva-nos aos glamorosos anos 50 da sociedade mexicana. Neste caso, uma jovem que passa os dias entretida em festas e rodeada de atenções masculinas, viaja para uma cidade mais interior e menos civilizada, com o objectivo de perceber o que se passa com a prima recém-casada.
A casa onde se aloja pertence à nova família da prima e é um casarão tipicamente inglês, onde não falta o estilo gótico nem o cemitério nublado. A história rapidamente adquire pormenores sobrenaturais que se desenvolvem para uma espécie de Weird que poderá recordar os livros de Jeff Vandermeer (principalmente as histórias com fungos e esporos fluorescentes).
A história destaca-se por usar elementos reais de algumas cidades mexicanas para as quais algumas famílias inglesas terão emigrado, a fim de explorar o minério e criar minas – uma quase escravatura de trabalhadores, em que muitos desapareciam sem deixar rasto.
Eis um comentário mais completo ao livro.
The Hollow Places
Este não é um livro perfeito mas possui elementos que o distinguem o suficiente para se encontrar nesta lista. Nomeado para o BSFA, The Hollow Places começa como uma história banal, mundana em torno de uma jovem recém divorciada que talvez tenha de voltar para casa dos pais – uma perspectiva medonha para qualquer pessoa que já tenha tido a sua independência e que tenha uma relação tóxica com um dos pais.
A jovem é salva de tal vivência pelo tio que tem um museu de curiosidades – estatuas de celebridades e animais empalhados, entre outras coisas. Mas quando o tio é operado de urgência e a jovem se vê sozinha, estranhas coisas acontecem – um portal abre-se para um mundo diferente que a leva para um género de Narnia de Horror. A história tem elementos interessantes, criando suspense de forma gradual, através de várias pistas inquietantes.
Alguns elementos de horror são lovecraftianos, destacando-se este elemento com o cruzamento de personagens LGBTQ+.
Podem ler um comentário mais completo ao livro.
Um Gosto a céu no Lago do Breu
Faltando o João Barreiros no Painel, resta-me deixar como uma das melhores leituras, uma história de sua autoria. Esta história foi publicada no seguimento do projecto Alimentopia, (que, de uma forma simplista, visa falar sobre o futuro da alimentação, reunindo académicos e profissionais de várias áreas).
Neste projecto também se publicaram algumas histórias de ficção, sendo uma delas a de João Barreiros.
A história centra-se num professor que, de tanto dizer que Deus não existe, morre e vai parar ao Inferno. Apesar da sua ingenuidade e boa vontade, até ele será passível de corrupção pelo Inferno.
Um dos pontos de interesse é o retrato dos seres angelicais, por oposição aos infernais que lhes confere uma peculiar aura.
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A Última Vida de Sir David
Este é daqueles livros que julgo ter ficado perdido no meio da pandemia. Pausado e denso, é uma fantasia que não é fácil de iniciar, mas que vale a pena.
A história, uma demanda tipicamente fantástica, usa os clichés do género de forma bem humorada e competente, que permite enquadrar-se no género, mas também, destacar-se. Denota-se ainda imaginação e originalidade, numa série de elementos mirabolantes e curiosos que complementam os clichés do género, e que mantém a leitura interessante, apesar da densidade narrativa.
A sucessão narrativa é lógica e realça a necessidade de plano prévio, com alguns elementos bem colocados que são usados mais tarde no decorrer da história.
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Banda desenhada
Bone
Se tivesse de escolher as melhores leituras da última década em banda desenhada, este volume estaria decerto entre os melhores. Ainda que os desenhos sejam fofinhos e as criaturas tenham um aspecto algo inocente (tirando os monstros, claro) a narrativa surpreende pela dimensão épica que toma.
A história apresenta três primos que, após expulsos da sua cidade natal, procuram outro local, e encontram um vale onde existem seres humanos numa espécie de época quase medieval.
Este local quase parece em paz – até estas criaturas aparecerem. O balanço desfaz-se, e as criaturas rato começam a aparecer mais frequentemente. Mas nem estas criaturas rato são os demónios que parecem, sendo as personagens de vários episódios caricatos e cómicos.
A história segue o trio de primos, tornando-os heróis de uma forma quase humana, fazendo com que cada um tenha uma personalidade completamente distinta, mas justificando os laços emocionais que os unem de uma forma fabulosa. A cereja no topo do bolo é como a narrativa explora, entre outras coisas, a manipulação de massas através das mais verdades.
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Peter Pan
Uma escolha polêmica, a julgar pelos vários comentários em relação a esta série. A história pega na figura de Peter Pan, o rapaz que nunca cresce, mas começa por nos apresentar Peter no mundo real – uma cidade suja e corrompida, que recorda um Oliver Twist ou David Copperfield, em que a ingenuidade infantil é confrontada com a corrupção dos adultos.
Neste caso, Peter é filho de mãe alcóolica e desconhece o pai. Apesar disso, é mais sortudo do que os órfãos que vivem aprisionados num orfanato, aos quais tece a imagem de uma mãe idílica, carinhosa e perfumada como nunca teve.
É nesta realidade que a fada o encontra, levando-o para a Terra do Nunca, onde irá viver grandes aventuras, enquanto luta contra o Capitão Gancho.
A história tornou-se polémica pelo final (que não vou revelar). No meu caso, achei adequado e coerente com a restante narrativa. Destaca-se, claro, o visual fabuloso, que, em combinação com a narrativa, fizeram desta série um dos grandes lançamentos de banda desenhada deste ano (sei que é uma segunda edição, mas não tendo tido acesso à primeira edição…).
Habibi
Outra leitura fabulosa que se encontra entre os melhores de sempre. Apesar de já ter lido muito bem deste volume, foi algo que fui adiando devido a toda a popularidade que rodeou este livro. O que encontrei foi algo extraordinário, quer do ponto de vista visual, quer do ponto de vista narrativo.
Se olharmos para as páginas, percebemos que cada uma é detalhadamente desenhada, com complexos e fascinantes arabescos – alguns que servem como “meros” enfeites, outros que complementam a história.
Em termos narrativos, apresenta uma epopeia que segue as figuras mais fracas da sociedade, uma mulher e um rapaz, ambos levados para a escravidão e exploração corporal, de formas diferentes.
O ponto fraco do livro será a forma como retrata outras culturas, usando alguns clichés e preconceitos que podem tornar-se incómodos nalguns momentos.
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O Penteador
Não, este não estava na minha lista. Mas só porque já ia ser referido pelo Artur.
Esta é, sem dúvida, uma das leituras mais bem dispostas de autoria nacional. O ambiente recorda o de algumas vilas mais interiores, em que todos se conhecem e confraternizam, sendo usual acabar os serões emborrachados (e neste caso em concreto, a correr sem roupa pela rua).
A localidade é incerta, imaginária, mas cruza elementos de várias terras reais e usa, até, a rivalidade que acontece existir nalgumas terriolas vizinhas.
A história centra-se num rapaz que se muda para a localidade e que rapidamente é envolvido neste estilo de vida mirabolante, relaxado e divertido.
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Bone Parish
Cullen Bunn é conhecido por várias séries de banda desenhada de horror. Esta é uma das suas mais recentes, centrando-se numa família que gere a máfia local.
Recentemente, esta família começou a comercializar uma droga nova que cria alucinações fabulosas (e possibilita, até, conversar com os mortos) mas que é criada a partir de cadáveres.
A substância tem um sucesso incrível, e é usada pela própria família para comunicar com o pai que faleceu há pouco tempo.
O que parecia um negócio de sucesso sem grandes percalços transforma-se num pesadelo quando outros grupos mafiosos, maiores e mais poderosos, começam a ganhar interesse por esta nova droga – sobretudo quando se iniciam as tentativas de a recriar.
O Castelo dos Animais
E se, depois de expulsos os porcos, uma nova ditadura se instalasse na Quinta dos Animais (referência à obra de George Orwell)? Vamos, assim, encontrar a quinta sob o domínio de um touro, que exerce a sua vontade através de um grupo de cães.
Os restantes animais, mais fracos ou dependentes (por exemplo, com crias), são obrigados a trabalhar de sol a sol para ganhar o seu sustento, enquanto os animais no poder vivem no luxo.
A história segue uma gata que cede a todas as exigências, até ao dia em que uma das suas amigas é assassinada pelos cães. Com a ajuda de outros animais que seriam igualmente fracos, desenvolve uma resistência pela ironia e pelo ridículo, que será difícil de manter, mas fabulosa de ler.
Podem ler um comentário mais completo ao primeiro e ao segundo volume.
Balada para Sophie
O mais recente trabalho de Filipe Melo e Juan Cavia é, também, o seu melhor. Para além de ser bastante mais longo dos que os anteriores, e de se esmerar num estilo visualmente fabuloso, tece uma história quase perfeita de um excelente pianista que acaba por não usufruir das suas conquistas ao que comparar, eternamente, a um prodígio da música.
Acaba por não tirar os louros das suas conquistas musicais e por enveredar por um caminho de solidão emocional, até ao dia em que uma jovem jornalista decide entrevistá-lo e acaba por quebrar algumas das suas defesas.
A par com a história, também a edição é fabulosa, em capa dura.