Depois do sucesso de A Sombra do Vento, a Dom Quixote publica O Jogo do Anjo, um romance que decorre no mesmo espaço (Barcelona), numa época anterior mas com algumas das mesmas personagens secundárias.
O romance inicia-se com um parágrafo enigmático, cujo sentido apenas é percebido na totalidade, após o final da história:
Um escritor nunca esquece a primeira vez em que aceita umas moedas ou um elogio a troco de uma história. Nunca esquece a primeira vez em que sente no sangue o doce veneno da vaidade e acredita que, se conseguir que ninguém descubra a sua falta de talento, o sonho da literatura será capaz de lhe dar um tecto, um prato de comida quente ao fim do dia e aquilo por que mais anseia: ver o seu nome impresso num miserável pedaço de papel que certamente lhe sobreviverá. Um escritor está condenado a recordar esse momento pois nessa altura já está perdido e a sua alma tem preço.
Estas palavras devem-se à personagem principal, Martin, um jovem que trabalha num jornal onde começa a publicar pequenos textos, protegido por Pedro Vidal, um homem poderoso na cidade de Barcelona. A mãe de Martin terá abandonado a família vários anos antes aquando do retorno do marido da Guerra – um soldado entorpecido que da vida apenas conhece a bebida e a morte, e que após saltitar entre vários empregos aos quais não se adapta, morre às portas do jornal La Voz de La Industria como segurança.
Martin ganha o seu próprio sustento no mesmo jornal, onde as suas capacidade literárias cedo o tornam alvo do ciúme dos colegas. Pedro Vidal acaba por lhe conseguir um contrato com uma editora que lhe permitirá viver da escrita: aproveitando a avultada soma de dinheiro que consegue pelos seus livros, arrenda uma austera mas temida casa, que consigo traz fantasmas do passado. Apaixonado pela secretária de Vidal, Cristina, a vida de Martin resume-se a ansiar pela sua atenção e em escrever mais livros, ao mesmo tempo que é assediado pelo dono de uma editora francesa para um projecto especial.
Na casa onde habita terá vivido há vários anos um outro escritor, apaixonado por uma artista de origens duvidosas, que terá conhecido o dono da mesma editora francesa, e terá sido contratado para pertencer ao mesmo projecto especial. Nos quartos há muito fechados existem fotos perturbantes e a curiosidade fará Martin iniciar uma investigação em torno dos antigos habitantes da casa.
Em O Jogo do Anjo não só retornamos ao cemitério dos livros tão falado em A Sombra do Vento, como conhecemos um Sr. Barceló mais novo e as gerações anteriores da família Sempere, ainda que aqui tenham um papel secundário. Para além das personagens, a história de Martin recorda levemente a do escritor investigado por Daniel Sempere, Julian Carax.
Apesar de algumas semelhanças O Jogo do Anjo pareceu-me uma história mais madura onde encontro dois pontos fracos: Martin é um jovem que deixa passar a vida demasiado facilmente; e o sobrenatural tem um forte papel nos acontecimentos.
Para além destes dois pontos, fiquei positivamente surpreendida pela diferença de tom entre os dois livros – Martin torna-se uma personagem caústica em cuja boca as verdades são, por vezes, disparadas de forma crua; e algumas das personagens revelam-se algo muito diferente do que estávamos à espera. Reinam as aparências, a cobardia e o sentimento de culpa por acções passadas e os descendentes nem sempre poderão desligar-se do passado familiar. Deixa-se de parte a inocência ainda que as intenções sejam boas.
Esta é, sem dúvida, uma história mais negra que A Sombra do Vento, mas onde também os livros possuem um papel fulcral no desenrolar dos acontecimentos. Talvez por isso tenha gostado imenso da história, ainda que de forma diferente do primeiro livro que li do autor.
Peguei esse emprestado. Bem curioso para ler. Achava o ‘Sombra’ muito adolescente. Abs!