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História curta, catalogada como juvenil, Vamos Comprar um Poeta é o último livro de Afonso Cruz que decorre numa distopia numérica onde se enaltecem as qualidades analíticas da certeza numérica sobre a imaginação e a incerteza da criatividade.

Estou apaixonado, disse.

Quanto?, perguntei,

Setenta por cento.

Uau!

Nesta sociedade qualquer conversa é objectivada com atribuição de quantidades e percentagens a emoções, acções e pensamentos – sinónimo de um pensamento prático que coloca a utilidade em primeiro lugar; e qualquer réstia de criatividade é vista como exótica.

É neste contexto que os artistas podem ser adoptados, como quem adopta um animal de estimação, esperando-se que forneçam diversão e lazer. Entre várias possibilidades a família que seguimos compra um poeta, decerto menos dispendioso que um pintor, e de resultados mais imediatos.

O pai não é alto, e eu tampouco, aliás, é por isso que na escola me chamam ordenado mínimo, que é algo que já existiu em tempos, mas que felizmente foi extinto, porque, dizem, era um entrave à competitividade mais elementar.

Apesar de ser aparentemente uma história simples, é impossível não perceber a indirecta à sociedade capitalista onde a vida ganha sentido com o consumo – não só pelo estímulo positivo que a recompensa tem no cérebro, mas tendo como objectivo consciente o estímulo da economia, princípio máximo desta sociedade.

Ainda que ache demasiado extrema a utilização de números em todos os aspectos é pelo exagero que se desperta no leitor a sensação de que estamos perante uma sociedade absurda, ainda que esta não esteja muito longe da sociedade utópica para muitos capitalistas, e se realça o papel da criatividade e da imaginação na evolução da espécie humana.

Editado para adicionar o seguinte comentário:

É impossível não comparar o livro de Afonso Cruz com Os números que venceram os nomes de Samuel Pimenta, principalmente na questão de haver uma substituição dos nomes por números. Posta esta semelhança de parte, percebemos que a razão e a forma como é feita esta substituição difere bastante. Se no livro de Afonso Cruz a substituição deriva da exaltação de um modelo capitalista, no livro de Samuel Pimenta deriva da prova da existência de Deus através de uma fórmula matemática. Por outro lado, quer a exploração da sociedade, quer o objectivo da história são bastante diferentes.