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Kallocaína é um dos mais recentes lançamentos da Antígona, a mesma editora que tem publicado distopias como Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, A Quinta dos Animais de George Orwell, Mil Novecentos e Oitenta e Quatro ou Nós de Zamiatine (para citar apenas os mais conhecidos).

Em Kallocaína retrata-se uma distopia de base militar que assenta na extrema formação militar de todos os elementos do seu povo, e na alienação do outro, do inimigo, que é fraco e corrupto.

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É por esta guerra que se justifica a extrema vigilância do indivíduo, necessidade que todos assumem como essencial e mais elevada, exercendo sobre eles próprios um rigoroso domínio de costumes e conversas. De tal nos apercebemos logo nas primeiras páginas quando a nossa personagem principal evita manter uma conversa com a esposa no elevador, local onde as escutas não chegam e por isso há que evitar um hábito típico de traidores e espiões.

Em casa os momentos em família são acompanhados obrigatoriamente por uma ama que, se sabe, fará o seu relatório; enquanto que, no quarto do casal existem conhecidas escutas com o objectivo de captar qualquer deslize que um adulto confesse ao seu parceiro.

Nem mesmo os nossos pensamentos mais íntimos nos pertencem, como durante tempo pensámos, sem ter esse direito. (…) Dos pensamentos e sentimentos nascem palavras e acções. Assim sendo, como poderiam os pensamentos e os sentimentos ser um assunto privado? O consoldado não pertence por completo ao Estado? Então a quem deveriam pertencer os seus pensamentos e sentimentos, se não, também eles, ao Estado?

Numa sociedade em que tudo se controla pelo Estado e o indivíduo existe como ferramenta desse Estado, o único espaço pessoal que se poderá ambicionar é o da mente, sob uma máscara de rectidão e controlo que nunca deve deixar cada cidadão (neste caso, consoldado). Mas sendo as acções resultantes de uma mente, geradas e congeminadas a partir de um pensamento, porque não supervisionar, também, o que se encontra no mais íntimo de nós?

É este o objectivo da nossa personagem principal, um consoldado cientista, ao inventar uma substância injectável, uma espécie de soro da verdade, que retira a máscara que todos possuímos para com os que nos rodeiam e expõe todos os pensamentos e sentimentos mais íntimos.

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Infelizmente, a experiência é bem sucedida – infelizmente porque, ao contrário do que imaginavam, a experiência revela que, por detrás da máscara de coragem, rectidão e quase pureza mental, encontra-se o receio, a dúvida e, até, o medo. O próximo passo? levar alguns indivíduos a inventar uma traição que confidenciam aos seus parceiros e aguardar para analisar os que não procederam à esperável denúncia.

– Uma coisa, pelo menos, é certa: o último resquício da nossa vida privada desaparecerá para sempre.
– Bem, isso não é assim tão importante! – disse eu alegremente – A colectividade está pronta a conquistar o último recanto onde as tendências associais se podiam esconder.

Kallocaína tem todos os elementos de uma distopia militar – a crença num inimigo comum moralmente inferior transformado, por retórica, em algo diferente do que um ser humano, um ambiente de vigilância extrema que leva à suspeita de tudo e de todos, o elevado investimento (e sacrifício compreendido) em rotinas militares.

O que distingue Kallocaína de uma distopia militar comum é a oposição do ponto de vista directo, quase inocente na sua devoção, mas raivoso no desgaste psicológico que advém da dedicação à causa; ao de alguém mais maduro, o seu chefe, que compreende que, acima dos quarenta anos, dificilmente existirá alguém que não tenha uma acção ou pensamento que lamente e que compreende o resultado psicológico de tal desgaste continuado.

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Mas não só. Simultaneamente assistimos à luta do consoldado com ele próprio, enquanto se tenta mostrar recto e perfeito na sua postura, mas sente a perda sucessiva dos seus filhos para o estado, cada vez mais distantes e envolvidos, eles mesmos, em rotinas militares; e o suposto afastamento da esposa, exemplo de conduta, que ele deseja, simultaneamente mais próxima (sentimento que não reconhece totalmente) e mais afastada (por lhe trazer fraqueza e dúvida).

Estará simplesmente chocado com a falta de devoção expressa pelas cobaias nas quais administrou kallocaína, ou será incapaz de reconhecer a expressão dos seus próprios pensamentos e sentimentos associado ao estado de extrema desconfiança em que se encontra?

Apresentando não só uma distopia mas uma exploração do ser humano em sociedades altamente militarizadas, Kallocaína revela-se uma excelente leitura de tom pausado, com imensos episódios que nos levam ás ditaduras vigentes no mundo actual (ainda que na altura a autora tenha sido inspirada na Alemanha fascista).

Em Portugal Kallocaína foi publicado pela Antígona.