Se há conto que gostaria de ver publicado em português, é o The Ones Who Walk Away from Omelas – uma das mais poderosas histórias distópicas. Principalmente porque até à cena final, não temos bem a certeza de estarmos perante uma distopia. A surpresa absoluta foi descobrir que a história não só foi publicada em português este ano, como foi publicada numa antologia de contos de Ursula K. Le Guin por uma nova editora – Barricada de Livros.

Este volume começa logo por um forte prefácio onde se afirma a importância da autora para a ficção científica, bem como a sua envolvência na crítica e na política. Referem-se, também, as principais obras da autora.

Segue-se o primeiro conto deste conjunto, O Dia Antes da Revolução, com uma pequena introdução de Ursula K. Le Guin, onde relaciona esta história com Os Despojados. Este conto apresenta Odo, a mulher por detrás da origem da sociedade apresentada em Os Despojados, enquanto idosa, vendo concretizada a sociedade que sonhou. Mas Odo é, acima de tudo, uma mulher idosa, feita de memórias e ligada à terra por um corpo gasto com falhas e necessidades. À sua volta, a sociedade perfeita ergue-se, entre felicidade, entusiasmo e revolução – uma energia que a própria Odo já não acompanha.

Para além disso, os jovens cresceram segundo um princípio de liberdade no vestuário, no sexo e em tudo o resto, e ela não. Tudo o que fez foi inventá-lo. Não é a mesma coisa.

Entre o confronto de si mesma com a nova sociedade, Odo vai recordando momentos marcantes da sua vida, relatando um passado de opressão e fome, de luta e resistência.

Quantas vezes tinha sido mofada – Cabeluda! Cabeluda! -, tinha sido agarrada pelos cabelos por polícias ou jovens rufias, tinha visto o seu cabelo ser completamente rapado por um soldado sorridente em cada nova prisão?

Mas a sociedade ideal não surge de um dia para o outro. A transformação faz-se ao longo de várias gerações com recaídas e revoluções.

O favoritismo, o elitismo e o culto da personalidade reaparecem sem serem notados e afloram por todo o lado. Mas ela nunca esperou que fossem erradicados durante a sua vida, numa geração. Só o Tempo opera as grandes mudanças.

Mais do que apresentar uma realidade política alterada como Os Despojados, este conto apresenta o começo da mudança, com um momento de revolução, sim, mas progressivo a partir desse momento, para permitir a adaptação de um novo modo de vida e o largar dos velhos modos. É um conto interessante do ponto de vista sociológico e político, mas é, também, um conto bem construído, coeso e envolvente, reflectindo a mestria da autora.

O segundo conto é o famoso Aquelas que abandonam Omelas (podem ler comentário mais completo ao conto num post apropriado). A história começa como uma aparente utopia. Tudo parece perfeito naquela cidade e todos parecem felizes, sem necessitarem de drogas ou outros estímulos para apreciarem a sua vida. A sociedade é evoluída e organizada, proporcionando o que de melhor se poderá imaginar! Mas…

Vós acreditais? Aceitais o festival, a cidade, a alegria?

A história torna-se irónica e desconfortável, uma verdadeira distopia que se esconde por detrás da perfeita sociedade, confrontando-nos com a natureza humana e com a capacidade de fazer sacrifícios (ou de sacrificar algo) para se manter e alimentar a ilusão. Confesso que aquando da primeira leitura, a história não ficou entre as melhores da antologia que tinha lido – mas lentamente, com o passar dos meses e a recordação da história, tornou-se uma das melhores histórias curtas que já li.

O último conto deste conjunto, Nove Vidas, tem uma história editorial curiosa, tendo sido publicado na Playboy. Não deixa de ser irónico que, em tal revista, a autora tenha tido de resumir o seu nome a letras singulares, para que os leitores não perceberem tratar-se de uma escritora e não de um escritor.

Ultrapassando este detalhe curioso, Nove Vidas apresenta uma missão espacial composta por uma equipa peculiar – a um duo de mineiros junta-se um grupo de clones. O contraste é evidente – enquanto que os homens normais pensam de forma semelhante, este grupo de clones foi preparado para responder da mesma forma aos mesmos estímulos e questões, o que lhe facilita a comunicação e o entendimento em grupo. Mas o que se perde quando se junta um grupo de indivíduos que pensa exactamente da mesma forma? Muito mais do que distintas personalidades.

Este pequeno volume publicado em português pela Barricada de Livros foi uma das melhores leituras de 2021. Este comentário ao livro já tinha sido escrito, mas não publicado – mais vale tarde do que nunca.