img_0328

Recordam-se de O Escritor, personagem do conto de Afonso Cruz na antologia MotelX Histórias de terror? O escritor que raptava pessoas para que, sob o stress da tortura, conseguissem ideias originais? E de Isaac Dresner e Bonifaz Vogel de A Boneca de Kokoschka?

Voltando a algumas personagens de outras histórias para criar um contexto familiar, Afonso Cruz centra-se agora numa família desfeita pelo abandono por parte da figura feminina. Sozinhos, pai e filho demoram a encontrar um novo equilíbrio, durante o qual o rapaz vai conhecendo figuras peculiares e conversando com a sua própria morte.

img_9806

Enquanto o duo pai-filho busca um novo equilíbrio, o pai compondo música, e o filho explorando o espaço que o rodeia e os sentimentos que se materializam em pessoas imaginárias, lemos as transcrições de reuniões de uma polícia secreta que os espia, com intuitos encobertos, julgando-se capaz de tudo.

Simultaneamente, acompanhamos o negócio editorial de Isaac Dresner, que continua a dar prejuízo, conforme é suposto, Excepto pelo trabalho de um escritor misterioso que recebe regularmente, contos de uma espécie de ficção que parece ter sido extraída da carne.

Na altura, o racismo americano fazia que os pomares frutificassem cadáveres. («Strange Fruit» era uma canção tão boa que Nina Simone, completamente fascinanda, afirmou: «Nunca ouvi nada tão desagradável.». E a seguir teve de ir à casa de banho, tinha os intestinos às voltas, a alma a pingar. Há canções que fazem bater palmas, não são más; mas depois há outras, as que silenciam a plateia ou que fazem uma evolução no corpo ou que dão um coice na boca do estômago.).

Em cada uma das linhas narrativas, que se cruzam mais vezes do que nos apercebemos numa primeira leitura, percebemos como, sucessivamente, as mais belas produções artísticas podem surgir dos cenários mais degradados, desesperados e horrendos, tal como a canção Strange Fruit terá sido inspirada nos mais horríveis episódios da história humana.

Carregada de sentimentos, Nem todas as baleias voam é uma história que transborda de imaginação e desolação, que, sem esquecer uma gota de ironia, engloba aspectos contrastantes da realidade, como uma espécie de aceitação, sem necessidade de redenção.

Nem todas as baleias voam foi publicado pela Companhia das Letras.