Em Futuroscópio o autor explora uma série de premissas futuristas, levando algumas das tendências actuais da nossa sociedade ao extremo – o extremo da vigilância, o extremo da estupidificação em massa, o extremo do afastamento da verdadeira ciência ou o extremo na entrega total à tecnologia.

De pequena história em pequena história, Miguel Montenegro debruça-se nas grandes questões sociais do presente mostrando sociedades distópicas onde, por exemplo, saber ler é grave, e ler um livro é crime passível de recondicionamento e estupidificação forçada do leitor. Ter capacidade de pensar, também. Aliás, o pensamento é algo que deve ser deixado de parte!

Noutro caso um jovem denuncia a medicina como prática incerta e baseada na crença, uma série de falácias que poderão ser prejudiciais à população. Pior do que ser condenado, o jovem é englobado na classe médica para, ele próprio, engordar das riquezas da classe e perceber as vantagens das práticas aplicadas.

Se por um lado assistimos à desvalorização da vida humana, por outro, esta, a vida, é mantida a todo o custo, mesmo quando alguém está cansado de viver eternamente, aspirando apenas a conseguir eliminar-se. A felicidade é uma espécie de imposição vazia, baseada em elementos supérfluos.

Nestes contos o futuro não é risonho e apesar de haver uma aparente felicidade dos cidadãos (da ignorância vem a felicidade) o futuro desenhado é um beco sem saída, sem evolução possível, uma regressão da humanidade que deixa, como  legado, a tecnologia, mas cuja inteligência dos humanos existentes não a poderia originar. Para o leitor trata-se de um constante contraste com tal mundo, que a mim me pareceu assustadora – não pelo retrato em si mas pelo receio da concretização de tal perspectiva extrema.

Miguel Montenegro explora, ainda, a sexualidade e as questões de género em três componentes distintas e bastante diferentes. Numa primeira, apresenta uma sociedade onde todos são fisicamente iguais, combinando os seus genes consoante a compatibilidade determinada por um programa. Querer ter um género é considerado uma traição e um desvio psicológico.

Noutra história, os “típicos” papéis encontram-se invertidos, com os homens a cuidar da casa e dos filhos, e as mulheres a desenvolver uma carreira e a terem um comportamento desrespeitoso e condescendente para com o outro género. No terceiro apresenta-se um cenário misógeno, de exercício de poder para dispor sexualmente das mulheres, quebrado por uma feminista que acaba por enfrentar a representação tradicional feminina.

Com este volume Miguel Montenegro demonstra ser capaz de duas coisas: capacidade em contar histórias e capacidade em apresentá-las graficamente. Por um lado as histórias apresentadas não são fáceis. Tratam-se de histórias futuristas e distópicas onde, sem grande introdução, conseguimos perceber o que acontece e onde, apesar de existirem temáticas já exploradas por outros autores, se reconhece um cunho próprio, um tom de ironia e crítica que consegue prosseguir por finais menos felizes (e por vezes, inesperados).

Por outro, apesar da complexidade das histórias, estas apresentam-se graficamente de forma competente e percetível, com capacidade para transmitir emoções e expor episódios de acção, resultando num volume de bom aspecto visual e de bons momentos narrativos.

Este volume foi publicado pela Arcádia, mas alguns destes contos já tinha encontrado em volumes anteriores de Apocryphus.

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