Esta foi a última conversa do dia, uma conversa que já tem sido habitual nos anos anteriores do Fórum Fantástico e que reúne João Barreiros e seus sobrinhos Artur Coelho, João Campos e eu. Abaixo eis a apresentação dos livros citados, bem como indicação de quem o citou.
Estando do lado da mesa, existem menos hipóteses para tirar notas de pontos interessantes, mas mesmo assim, houve alguns detalhes que gostaria de realçar. Um dos livros indicados por João Barreiros, The Explorer’s Guide de John Baird é um bom exemplo da interacção que permite o formato físico, com páginas amareladas a simular o antigo, e contendo não só texto como banda desenhada e outras imagens. Um livro que foi directo para a minha lista de aquisições futuras.
Outra das referências de João Barreiros que achei curiosa foi o La Casa de Daniel Torres, um volume que apresentará a casa ao longo dos milénios, desde os primórdios da humanidade aos tempos modernos, mostrando não só o interior das habitações mas representando um pouco do quotidiano e da mentalidade.
Outro volume referido por João Barreiros foi Slade House de David Mitchell, continuação de The Bone Clocks, onde alguns seres humanos são chamados a uma misteriosa casa para serem enclausurados e comidos de forma estranha. A descrição da história foi bastante vísceral.
Luna foi referido tanto por João Barreiros como por João Campos, mas de formas bastante diferentes. João Barreiros irritou-se bastante com as referências brasileiras mal efectuadas que demonstram pouco trabalho de pesquisa, e com as traduções mal feitas de frases para português (brasileiro) que pareceriam saídas do google translator. Já a João Campos estas referências não estragaram o livro, do qual gostou bastante.
O que achei engraçado nesta diferente percepção do mesmo livro, está relacionado com um texto que li algures numa revista americana de ficção sobre os erros dos romances, e até que ponto está o leitor disposto a acumulá-los até se desgostar com o texto. Claro que tal nível de tolerância está relacionado com o quanto esteja a gostar da história.
Se ainda não leram John Brunner (como eu) decerto que depois das múltiplas referências de João Campos ficam decididos a ler. Claro que terei de iniciar com Stand on zanzibar que já repousa há algum tempo na prateleira. Outro dos escolhidos de João Campos que me chamou à atenção foi The Wolf Among Us por estar relacionado com a série de banda desenhada Fables. Para além da relação com a banda desenhada, captou-me a forma como o final fará repensar todas as fases do jogo.
Já tinha reparado nas várias críticas do Artur Coelho aos livros de James SA Corey, longas space-operas, mas que terão alguns pontos repetitivos ao longo dos vários volumes. Fica a referência ao primeiro, que poderá ser uma boa obra para recordar o estilo. Ficou-me, também, a referência a Os Marcianos somos nós de Nuno Galopim, bem como do mais recente Almanaque Steampunk. Mas sobre as escolhas de Artur Coelho não falo mais – podem encontrar detalhe sobre as mesmas no seu blog.
Eis então as minhas escolhas e os motivos que me levaram a selecioná-los. A maioria dos volumes que referi são colectâneas, volumes que reúnem as melhores histórias de alguns autores – já que contos não vendem, este ano foi o que mais li.
O primeiro volume escolhido foi Stories of Your Life and Others de Ted Chiang. Esta foi uma das grandes descobertas do ano. O autor possui contos excepcionais, bem escritos, de premissas desenvolvidas de forma concisa, mas sem sacrificar a empatia das personagens, e dando espaço para o desenrolar dos acontecimentos. A maioria dos contos têm uma de duas premissas: inteligência ou religião.
Os contos de premissa centrada na inteligência desenvolvem-se utilizando ora a inteligência artificial, ora a inteligência humana artificialmente aumentada. Temos assim manipulação de genes que leva a uma nova raça de seres humanos, intelectualmente incompátiveis com os restantes, ou grandes duelos entre dois seres humanos que, de tão inteligentes jogam xadrez com a realidade. Do lado da inteligência artificial temos o conto que dá nome ao conjunto, onde se codificam várias entidades, uma espécie de bonecos virtuais com capacidade de aprendizagem e desenvolvimento, que ao revelarem pensamentos e sentimentos, levam a várias questões sobre onde começará a identidade e os direitos e deveres associados.
Os contos de premissa religiosa não possuem uma perspectiva muito positiva. Ora existem anjos que transformam os humanos, mas nem sempre de forma positiva, fazendo com que percam um braço ou uma perna, sem qualquer explicação; ora apresentam uma nova versão da construção da Torre de Babel onde os homens a terminam, chegando à cúpula celeste.
Mas a colectânea possui, também, várias histórias fora destas premissas. Uma delas apresenta-nos seres inteligentes e humanóides, uma espécie de robots que vivem num mundo quase hermeticamente fechado. A pouca perda de energia fã-los viver cada vez mais lentamente.
The Bees de Laline Paull não tem uma das premissas mais originais nem é, formalmente, dos melhores livros do último ano. Demasiado centrado numa única personagem demasiado multifacetada,é, no entanto, uma leitura que me entreteve bastante e que tive de referir. Capaz de nos fazer simpatizar com a personagem, possui descrições de como as abelhas se fascinam perante a abelha rainha, e apresenta-nos uma rígida hierarquia na colmeia. Ainda que não ocorra nenhum acontecimento político é um género de distopia animal em que a rigidez social é uma constante já esperada.
Se as leituras anteriores se apresentam bastante simpáticas, criando empatia com o leitor, este Deathbird Stories de Harlan Ellison é brutal, visceral e simultaneamente fascinante. O leitor assiste mesmerizado a cenas horrendas, que, são descritas de tal forma, que despertam o lado animal do ser humano. Assim começa a colectânea com um conto brutal, onde todo o bairro assiste, estático, ao homicídio de uma mulher. Um crime sangrento e ruidoso, quase teatral, em que a vítima agonia impotente.
Os restantes contos apresentam ecos deste misto de fascínio e aversão, como que transformando o leitor num dos habitantes do tal bairro, descrevendo de forma controlada mas quase sádica, episódios horrendos com pitadas de ironia que fazem o leitor assistir quase estático.
Aqui está um livro que se destaca bastante dos anteriores, nem que seja por poder ser encontrado na secção de culinária. E se calhar esta caracterização nem estará assim tão errada porque o livro, na verdade, até apresenta receitas. À mesa com Kafka apresenta ingredientes e modos de preparo, mas dentro do contexto de uma história que é contada ao estilo de algum escritor conhecido.
E que bem é esse estilo simulado. Sopa rápida de miso a la Franz Kafka recorda na perfeição o livro O Processo, descrevendo um episódio que facilmente poderia ser encaixado no livro sem problema algum. Outro dos contos que achei peculiar é Ovos com estragão a la Jane Austen que se centra numa senhora que pretende apresentar os seus belos ovos à sociedade. De origem menos elevada do que a daqueles a quem pretende apresentar os ovos, procura uma forma de os enaltecer sem cair no ridículo. Já Passarinhas desossadas e recheadas a la Marquês de Sade foi o conto lido no Recordar os Esquecidos e que me fez adquirir o livro.
Das colectâneas apresentadas, esta, Trigger Warning, é decerto a menos coesa, quer em conteúdo, quer em formato das histórias. Apresentando ora poemas curtos e estranhos (como uma ode a uma cadeira), ora descrições de fotos mórbidas, ora longas histórias que já foram publicadas isoladamente, destaca-se sobretudo por algumas histórias excelentes que fazem valer a pena o livro.
Para além de apresentar o conto The Sleeper and the Spindle (que ganha maior dimensão na versão ilustrada), destacam-se dois contos centrados em personagens bastante conhecidas de todos: Dr. Who e Sherlock Holmes. O primeiro é uma aventura engraçada e caricata que reconstrói de forma impecável o ambiente da série. O segundo apresenta-nos o detective já idoso, explicando parte do seu fascínio por abelhas.
A maioria das histórias de Paolo Bacigalupi em Pump Six and other stories apresentam um mundo ecologicamente destruído. O nível das águas sobe de tal forma que grande parte do território está inundado gerando milhões de refugiados e a maioria das espécies animais e vegetais foi extinta. Gera-se fome quer pela indisponibilidade de terreno, quer pela extinção em massa. Para compensar, existem fortes investimentos na biologia molecular que produzem várias espécies artificiais, mais adaptadas à nova realidade.
Um dos melhores contos foge, no entanto, deste contexto. Pump six, a história que deu origem ao conjunto foi o conto que me deu a conhecer o autor, e um exemplo extraordinário de uma história apocalíptica contada ironicamente. A história começa com um homem a entrar na cozinha, e a encontrar a esposa com a cabeça dentro do fogão, com um fósforo acesso, procurando a origem de uma fuga de gás. Depois de a retirar, explica-lhe a estupidez do cenário, relembrando um outro episódio onde teria tentado limpar uma tomada com um garfo. Percebemos dentro de pouco tempo o que se passa: a água cada vez mais contaminada das canalizações está a embrutecer e a transformar os seres humanos de tal maneira que alguns já são autênticos animais, restringindo-se a três actividades, copular, comer e pregar partidas.
Melancólico e estranho, A Stranger in Olondria, centra-se numa personagem que tem tudo para ser um herói típico de aventuras fantásticas. Enganem-se. O fascínio que nutre por outra civilização onde espera encontrar livros sem fim e viver descansadamente, torna-se um pesadelo de perseguições religiosas, febres constantes em que não sabe se está a ser assombrado ou se terá sucessivos pesadelos desgastantes.
As próximas referências são livros que se encontram no meu radar para aquisições futuras. City of Blades será o segundo de uma trilogia de volumes independentes. O primeiro, City of Stairs, foi uma das melhores leituras do ano passado e é com curiosidade que aguardo este. O mundo onde decorre possui duas civilizações concorrentes, uma de tecnologia evoluída e outra de grandiosos edifícios construídos por Deuses. Quando os Deuses são assassinados, os edifícios desaparecem, mas persistem as escadas construídas pelos humanos. A cidade fica, assim, carregada de escadas, escadarias, pequenos degraus e caracóis que levam a lado nenhum – pedaços que recordam os milhões de pessoas que desapareceram com os edifícios.
The Flicker Men parece ser uma das grandes promessas dos próximos tempos. Não foi a sinopse que me captou, mas várias críticas que o descrevem como uma espécie de cruzamento entre Stephen Hawking e Stephen King, ou seja, contendo grande detalhe científico num excelente thriller.
A última referência não tem, ainda, capa. Big Book of SF será o grande projecto de Ann e Jeff Vandermeer para o próximo ano, onde pretendem reunir ficção científica exemplificativa de todo o século XX, com os mais variados temas, origens e desenvolvimentos.
Outros resumos das sessões de Conversas Imaginárias 2015